Hoje foi um dia cheio.

Primeiro, houve a reunião entre os capitães. Isso foi durante a manhã. Sete dos treze capitães que compunham a Gotei 13 se reuniram pela primeira vez desde o sumiço de Ayato. Foram discutidos diversos pontos pertinentes. Pontos que flutuavam na cabeça da garota dia e noite, e que finalmente puderam ser compartilhados. Em seguida, houve a invasão. A "invasão", se é que podia realmente chamar disso. Até então nenhum dos esquadrões conseguiu localizar o suposto ryoka. E já havia se passado horas de investigação. Tudo o que havia de evidência era a enxurrada de energia espiritual que a fez interromper o encontro dos capitães na metade. E, por fim, houve o caso com Nimura Kishou. Sua libertação, para ser mais específico. Não foi um momento muito agradável. Foi aterrorizante, para falar a verdade. Alguma coisa tomou conta dela naqueles corredores imundos do Ninho dos Vermes. Algo bizarro, diferente de tudo o que ela havia visto antes. Algo negro, repleto de cílios, e com um olho imenso e esbugalhado que parecia olhar diretamente para a sua alma.

Ela deu um suspiro.

Já era noite. A lua brilhava pálida e gerava uma aura de solitude. O barulho do dia havia ido embora. Ela sequer ouvia os passos distantes dos shinigamis no lado de fora. "...Acho que por hoje já está bom", pensou. "Não vou conseguir mais encontrar nada de útil. Hora de organizar os papeis e encerrar por hoje." Ela cruzou os longos corredores da primeira divisão e subiu as velhas escadas de madeira que levavam até os seus aposentos. O mesmo caminho de sempre, que a recebia no fim do dia, como se desse um tapinha nas suas costas e a agradecesse pelos esforços. Ela se sentiu bem, e acabou se distraindo. E foi só a poucos metros do gabinete que ela percebeu.

Havia uma figura na frente da porta.

A luz que vinha da janela iluminava apenas um contorno ao redor do seu corpo. O resto estava negro, oculto. Mais parecia um fantasma. Por um instante pensou que fosse um invasor, e sua mão foi instintivamente até a zanpakutou. Pensamentos voaram na sua cabeça e ela até mesmo pensou que se tratasse do ryoka de antes. Mas assim que os olhos do rapaz cintilaram junto à luz, ela se lembrou dele. Não havia como se esquecer daqueles olhos.

ー Kuramoto Aizawa.

Proferiu, esperando que o rapaz saísse da escuridão. Houve um gemido agudo do vento, que entrava de penetra pelas frestas nas paredes. Ela pensou um pouco, e então continuou.

ー Eu já imagino o motivo de você ter vindo até aqui. Venha. Vamos conversar dentro do gabinete.

Ela empurrou o portão de madeira, que se abriu com um rangido. Caminhou até a sua mesa, removeu o seu manto de comandante, o apoiou na cadeira, olhou para ele e deu um sorriso. "Hoje eu usei ele o dia todo, não foi? Usei tanto que até me esqueci que o estava vestindo." Ela levou as mãos até a nuca e espalhou os cabelos. Em seguida apoiou as costas na parede, cruzou os braços, e fechou os olhos. Seu semblante estava calmo. Ela já sabia o motivo da visita.

ー Pois bem. Pode começar o relatório.

Importante:

ー Muitas coisas.

Respondeu a indagação do rapaz. Não pretendia falar muito mais do que isso. Aizawa se aproximou da sua mesa e largou dois documentos, e então caminhou até a varanda. Kuina esperou alguns segundos, suspirou e caminhou até eles. Suas mãos deslizaram pelos papéis por um momento, e então os abriu e começou a ler.

ー Mas… o que?

Seus olhos se arregalaram. Sem perceber, suas mãos agarraram o papel com tanta força que acabaram amassando-o. Não demorou muito tempo para que começasse a suar frio. A cada linha que lia, a temperatura do salão parecia descer uns 5 graus. "...Vazio?", pensou. "O que isso significa? De onde diabos essa criatura veio, afinal?" Seus olhos subiam e desciam, iam e voltavam. Houve um ponto em que perdeu a conta de quantas vezes havia lido aquele texto. Essas folhas de papel que Aizawa entregou para ela, de alguma forma, continham mais informação do que ela jamais poderia imaginar. Dragões do vazio, desequilíbrio das almas, subterrâneo da Central 46. Subterrâneo da Central 46? …O que a Central 46 tinha a ver com tudo isso? Por que foi Awashi, de todas as pessoas, a encontrar essa criatura? E por que ele não a contou sobre isso antes de desaparecer? Sua cabeça começava a acelerar, e acelerar, da mesma forma que acelerou quando estava na reunião, e quando estava coordenando os esquadrões, e quando estava frente a frente com Nimura Kishou.

ー Você invadiu o território da Central?! E matou uma pessoa?!

Exclamou, olhando para ele, sem acreditar no que estava ouvindo. O rapaz havia cometido dois crimes graves, e sequer teve a intenção de consultá-la antes. Ela franziu a testa, e um pensamento irritante invadiu a sua cabeça. Era só mais uma baixa na Soul Society. Só mais uma transgressão contra a Central 46. Que coisa, não? Ora, que seja. É só mais uma tragédia para largar nas costas da Kuina, honorável comandante substituta, como se largam bagagens na mão de um mordomo. É só isso. Afinal de contas, só estamos nessa lama por culpa dela e da sua maldita incompetência. Não é verdade? É verdade, sim. Claro que é verdade. Tão verdade que Aizawa começou a subir o tom. A sua cabeça e o rapaz formavam um dueto estridente, preenchendo sua mente de vozes que gritavam, e gritavam, e a enchiam de bagagens. Mais bagagens. E falavam de Nimura Kishou, e em como matariam todos que o impedissem de equilibrar essa porra. E em como ela não tinha direito nenhum de impedir que isso acontecesse e que Awashi havia sumido porque ela não soltou o (demônio) cientista a tempo e que a Seireitei provavelmente deixaria de existir até o próximo mês e ela não conseguia mais lidar com tudo isso e esse moleque indisciplinado da segunda divisão não parava de gritar e

ー SILÊNCIO.

Ela exclamou, batendo com ambas as mãos na bancada. O som ecoou pelos corredores, e se Aizawa prestasse atenção, ouviria um dos shinigamis desatentos no andar de baixo se assustar e tropeçar. Kuina recuou um passo, percebendo o seu descontrole, e então deu um suspiro. Passou a mão na bochecha e se surpreendeu com a quantidade de suor. Houve um momento de silêncio. Ela se sentou na cadeira, lentamente. E então abriu espaço na bancada arrastando alguns livros para o lado. Por alguns segundos, ficou ali, encarando o nada. Até que apoiou a testa na mesa, e com ambas as mãos começou a esfregar a nuca. Forte. Muito forte. Como se estivesse tentando limpar a sua mente à força, pegando cada um dos pensamentos pelo pescoço, esganando-os, e lançando-os para longe com as próprias mãos. Ela esfregou, e esfregou. E por um instante achou que iria gritar de novo. Porque aquele dia parecia estar amaldiçoado. Aquele dia parecia nunca acabar. Apenas surgiam problemas. E surgiam problemas. E surgiam problemas. E surgiam problemas. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam. E surgiam.

Parou.

De repente, parou. Ela levantou a cabeça e fitou Aizawa. Seus olhos estavam cerrados, e um par de olheiras estava ameaçando se formar. Ela entrelaçou os dedos na frente do rosto, com os cotovelos apoiados na mesa. Houve silêncio novamente. E então começou a falar.

ー Nimura Kishou. Esse homem a quem se refere. Ele foi solto hoje à tarde. A partir de agora, sua sentença está temporariamente suspensa, e ele atuará como o novo capitão da 12a Divisão.

Proferiu, seca. A este ponto, não havia mais motivos para esconder isso. Nimura agora fazia parte da Gotei, e era um capitão da mesma forma que Ei Sei é, da mesma forma que Satoru é, da mesma forma que Awashi foi.

ー Sobre essa teoria de que os desaparecimentos são causados pelo desequilíbrio entre as almas... Não posso opinar. No momento, não há nada que comprove se isso realmente é verdade, ou não. Por isso, se acalme. Não se esqueça de quem você serve. Honre o manto negro que esta vestindo. Acha mesmo que Awashi ficaria feliz de ver você distribuindo ameaças a esmo e jogando fora tudo o que vocês construíram?

Ela pausou, e tomou um tempo para encará-lo em silêncio. Para que ele entendesse a gravidade daquela situação. Não só isso, mas também a gravidade do que havia acabado de fazer.

ー ...Este dragão... Dragão Vazio, como Awashi o chamou. Você chegou a vê-lo? Ele realmente está alojado no subterrâneo da Central 46? Tem ideia de quais são as pessoas que sabem da sua localização? Se essa criatura realmente veio de uma dimensão desconhecida, não vou permitir que sua existência seja escondida da Gotei 13.

Importante:

ー Covarde.

Kuina franziu a testa. Calmamente levantou da cadeira e fitou o rapaz. Ela entendia a dor do tenente. No fundo, ela entendia. Ela experimentou essa dor diversas vezes durante a sua vida. Não apenas com Awashi, mas com Akashi, com Ayato. E com Yuu. Só que Yuu foi muito antes disso, quando ainda era uma


criança, longe das preocupações de um Shinigami, ou de um membro do exército real. Ela de repente sentiu raiva. Não só do garoto, mas de muitas coisas. Sentiu raiva do fato de não poder simplesmente largar tudo como Aizawa estava fazendo, e de não poder abrir uma porta e magicamente ver Awashi e os outros do lado de fora. Ela cerrou os punhos, e encarou o garoto com olhos afiados, mas úmidos. E quando falou, sequer percebeu que, assim como ele, estava erguendo o tom de voz.

ー No fundo, é isso que você é. Um covarde. Tudo o que você tinha, todo o seu propósito para viver... vinha de Awashi? Está brincando comigo. Só porque ele não está mais aqui, isso te dá o direito de rolar no chão como uma criança e cortar relações com a sua comandante? Vou te contar algo interessante.

Dito isso, abriu uma gaveta de forma tão rápida que ela quase saiu dos trilhos. De dentro, tirou um relatório de 12 páginas grampeadas e o jogou na mesa com força.

ー Igarashi Aika, ex-capitã da 7a Divisão e vítima dos desaparecimentos assim como Tsujikaze Awashi, está viva. Sabia disso? Você por acaso sabia disso? Nós temos a assinatura de reiatsu dela sendo preservada dentro do ISPD. Diferente dessas especulações sobre desequilíbrio das almas que você está tomando como verdades absolutas, o que eu estou te dizendo é um fato. Nem todos os capitães que sumiram estão mortos. Eles estão em algum lugar, talvez esperando que pessoas como eu e você os tragam de volta. Talvez esse seja o caso de Awashi. Já parou para pensar nisso?

Concluiu, e viu que estava ofegante. Houve um momento de silêncio. Uma brisa gelada invadiu a varanda. Seus cabelos voaram loucamente. O manto de comandante que jazia na cadeira quase foi arrastado para o chão. Kuina olhou para baixo. Olhos distantes.

ー Não estou usando o nome dele para te manipular, ou o que quer que seja. Awashi também foi importante para mim. E é justamente por isso que não estou medindo esforços para encontrá-lo, até que sua morte seja confirmada na minha frente. Não vou tentar tomar para mim o vínculo que você tinha com ele. Se o seu propósito vinha dele, então persiga-o. Não aceite seu sumiço como uma criança impotente. Nós estamos por um fio de finalmente abrir as cortinas desse mistério.

E então, olhou para ele. Olhos honestos, cansados. Mas olhos esperançosos ao mesmo tempo. Olhos de alguém que ainda conseguia ver um Awashi respirando no horizonte.

ー Aizawa. Eu preciso de você para os conflitos inevitáveis que estão por vir. Se descobrirmos a origem disso tudo, e no fim do túnel não houver nada além do cadáver de Tsujikaze Awashi, então não entrarei mais no seu caminho. Pode jogar fora o emblema de tenente que carrega consigo e fazer o que bem entender.

Mas até lá, eu preciso de você.

Importante:

Kuina se sentou novamente. De alguma forma, ela havia conseguido trazer o rapaz de volta à realidade. E se sentiu aliviada por isso. Afinal, ela precisava dele. Não só pelas suas habilidades. Talvez nem ela soubesse disso ainda, mas o elo que unia os dois era muito, muito mais profundo.

ー Não é como se eu estivesse tentando esconder isso de você ー respondeu a primeira pergunta. ー Na verdade, a primeira vez que anunciei isso para a Gotei 13 foi hoje, durante a reunião dos capitães. Até então, os únicos que tinham conhecimento da assinatura eram eu, alguns membros do instituto de pesquisa e aqueles fortemente relacionados a Igarashi Aika e Yukimura Yuichi.

Concluiu, tentando ignorar as provocações do rapaz. Não o retrucou. Ela sabia que isso não faria a menor diferença em alguém como ele. E também sabia que ela não tinha forças restando para aturar mais uma discussão.

ー Preciso de tempo para pensar no que fazer a respeito desse dragão. Na verdade, depois desse relatório que me entregou, preciso de tempo para pensar sobre muitas coisas. Mas dada a sua empolgação, tenho uma nova tarefa para você.

Dito isso, ela abriu mais uma gaveta e tirou alguns papéis, um pincel e um frasco de tinta. Ela passou o minuto seguinte em silêncio, concentrando-se na escrita. Sua letra era impecável, ainda que estivesse cansada. Ela traçava os kanjis de forma limpa e fluida. Uma caligrafia que Aizawa, que nunca teve uma educação formal, provavelmente não conseguiria reproduzir nem com cem folhas de papel.

ー Como você deve ter percebido, a Seireitei foi atingida por uma onda de energia espiritual hoje mais cedo. Até onde sabemos, isso só pode ter sido causado por um ryoka. Mais especificamente, um Hollow. Até então, os esforços da Gotei 13 para localizar esse invasor foram em vão. Mas agora tenho você, e tenho Nimura Kishou também. Então posso tirar proveito disso.

Dito isso, se levantou e caminhou até a varanda. Ela tomou alguns segundos para fitar uma última vez aqueles olhos afiados. Por fora, pareciam indiferentes como sempre. Mas Kuina sabia que eles ardiam de determinação mais uma vez. Ela estendeu a mão para entregar-lhe a carta, que agora estava dobrada e amarrada com um fio vermelho, e concluiu com a voz mais firme que conseguiu emitir.

ー Antes que ocorra a reunião com o Rei Hollow, quero que vá até o Instituto Shinigami de Pesquisa e Desenvolvimento. Se eu realmente entendi como aquele homem funciona, ele provavelmente já está investigando a origem da reiatsu invasora. Com esta carta, ele será obrigado a lhe fornecer informações a respeito do paradeiro do ryoka. Isto já deve te dar um ponto de partida.

Disse, e então cruzou os braços, fitando o horizonte junto dele. Um vento rodopiou pelo salão mais uma vez e seus cabelos voaram juntos. Kuina cerrou os olhos.

ー Desde que Awashi sumiu, acredito que você seja o melhor rastreador presente na Gotei 13. Imagino que após tantos assassinatos, caçar tenha se tornado algo tão natural quanto respirar. Pois bem. A sua missão é simples. Tudo o que vou fazer é adicionar mais um nome à sua lista de alvos.

Disse, e por dentro do kimono seus punhos cerraram.

ー Esse ryoka. Quero que localize-o. E cace-o. Da mesma forma que caçou tantos outros no passado. Não o deixe fugir depois de bater na nossa porta de forma tão insolente. Se possível, inclusive, traga a cabeça dele para mim. Considere esta uma missão de prioridade máxima, dada a você diretamente pela comandante dos treze esquadrões.

Concluiu, e então se virou.

ー E tome cuidado com Nimura Kishou. Talvez você ache que não, mas te garanto que ele é diferente de qualquer shinigami que já viu antes. Não tire conclusões precipitadas, e acima de tudo, não baixe a sua guarda.

Importante: