Se os deuses não irão em sua salvação, eu irei! E, ainda, se um deus escolher em meu caminho ficar, então, a ele concederei o dom da morte.

Ao centro de um pântano dentro dos limites de Rukongai, uma flor de lótus florescia da escuridão daquelas águas. Dotada de proporções surreais, aquela formosa flor irradiava uma luz dourada pelos pequenos feixes que conseguiam encontrar uma saída por entre suas pétalas fechadas. De maneira cuidadosa e lenta, suas folhas bamboleavam ao aguardo da prometida hora na qual concederiam a aquele mundo seu magnífico desabrochar.

Imerso em seus pensamentos lastimáveis sobre sua então miserável existência naquele plano, Pericolo acabara desviando de seu caminho inicialmente traçado em sua mente confusa. Nunzio Pericolo era um homem baixo e maduro, adornando uma barba ligada ao cabelo curto e ao bigode. É detentor de uma aparência simplória e significativamente esquecível. Durante sua vida humana, era capo de um grupo mafioso de grande renome em Nápoles, porém buscou sua redenção ao abandonar os negócios e dedicar tempo a cuidar de seu filho enfermo. Sua morte foi dada na noite em que o garoto havia completado seus doze anos, ao sair do carro teve sua vida tirada por membros de seu antigo grupo, segundo os boatos a execução teria sido uma ordem direta do grande líder deles, afinal Pericolo era detentor de muitas informações que jamais poderiam ser vazadas.

Não sabia como e nem porque havia se desviado de seu caminho, mas depois de alguns minutos completamente inconsciente durante sua caminhada, aquele velho homem se deparou próximo àquele pântano desprezado pela maioria das almas de Rukongai. Mas como vim parar aqui? Ao recobrar seus sentidos e pensar por alguns segundos, era nítido que estava no lado oposto de onde deveria ir. Eu não deveria estar aqui, eu… eu preciso ir até aquele lugar. Confuso, cansado e desapontado, Pericolo retomou suas passadas lentas e pesadas, tentando ir até onde acreditava que deveria ir, mas depois de vinte ou trinta passos ele parou. Algo não estava certo naquela região. O vento quente do interior daquele lamaçal parecia o chamar. Fique. Ele poderia jurar que conseguia ouvir o próprio pântano falando com ele, pedindo para que ele entrasse em seus domínios. Julgou ser sua mente lhe pregando peças novamente, por isso balançou a cabeça como se quisesse espantar seus pensamentos. Venha! Novamente ele parou. Seu corpo ficou estático e sua espinha parecia gelar, ele podia sentir uma voz doce, calma e reconfortante sussurrando em seus ouvidos. No fim, não conseguiu mais resistir e adentrou, pensou que ali conseguiria o que estava em busca em seu destino. Dar um fim a sua segunda vida.

Tomado pela escuridão, os domínios do pântano eram traiçoeiros, ainda mais quando não se sabe exatamente onde se quer chegar. Sorte ou milagre, ao momento em que havia decidido desistir, Pericolo avistou um feixe de luz que escapava por todo aquele breu. Se esgueirou para ir de encontro até lá e, para sua felicidade, isso não demoraria muito. Assim que se meteu entre alguns galhos e folhas secas e os atravessando, aquela pobre alma dotada da vontade de desaparecer vislumbrou a grande flor de lótus ainda fechada. Seus olhos se encheram com a luz que ela emanava e seu coração acelerou com a curiosidade frente ao desconhecido. Isso… é lindo.

As pétalas pareciam possuir vida, não possuíam cores determinadas ou próprias, elas pareciam fazer com que todas as cores existentes faseassem por si, uma hora sendo branca, outrora sendo rosa e em outro momento até mesmo uma junção de todas enquanto depois se tornava translúcida. Aquela formosa criação da natureza parecia aguardar Pericolo, ou melhor, parecia aguardar qualquer alma para que pudesse apreciar o seu majestoso desabrochar. Suas folhas se agitaram ainda mais, de seu interior a luz emanava ainda mais forte, as águas em sua base se inquietaram e até provocavam pequenas ondas, as árvores ao redor balançavam com uma ventania suave. Eu estava a seu aguardo, Nunzio Periocolo! Em um estalo tudo se acalmou e majestosamente a flor de lótus desabrochou, liberando uma onda de pressão espiritual por uma área tão grande que fugia até mesmo dos domínios daquele lamaçal. O homem sentiu uma brisa quente carregada de fogo atingindo seu rosto, ele experienciou o sopro da vida novamente.

Durante os primeiros segundos em que a mesma se abriu, a luz era tão forte que ele mal conseguia manter seus olhos abertos, sendo obrigado a cerrar os mesmos durante este instante. Abra-os, eu sou o Iluminado. Após receber essas instruções sopradas pelo vento, Pericolo as executou e, no momento em que os abriu, testemunhou um bebê deitado ao centro daquela flor. Detinha um longo cabelo verde extremamente claro, quase brancos, mas isso não era o que mais chamava a atenção, mas sim seus olhos. Eles brilhavam com uma luz dourada enquanto sua pupila parecia ter o desenho de um lírio talhado no ouro. Ele não chorava, apenas olhava ao redor, calmo, quieto e curioso. Ao momento em que seus olhos agitados encontraram com os do velho, ele sorriu, irradiando a alegria de ser uma criança.

Akira é o seu nome e Higashikata o de minha família, nossa família. Estas foram as primeiras palavras que o garoto nascido da lótus havia escutado depois de ser retirado do pântano pelo homem que o encontrou. Não era só mais uma alma perdida naquela imensidão e sua chegada havia resgatado também Pericolo de suas crises. Agora ele era um pai. Novamente. Ganhara a chance de começar sua vida com uma nova criança, um menino concebido na Sociedade das Almas pela própria Sociedade.


O jovem passou a viver ao Norte de Rukongai juntamente com Pericolo e também algumas outras almas que compartilhavam moradia e companhia. Durante muito tempo de sua vida o seu maior entretenimento era escutar as histórias das pessoas da região de quando eram vivas e pertencentes ao mundo dos humanos. Suas vitórias, derrotas, conquistas e perdas pareciam ser feitos surreais para o jovem de cabelos verdes claros que jamais havia experienciado qualquer coisa do plano terrestre.

Apesar de ser um prazer para Akira escutar cada aventura das almas ao seu redor, algo dentro dele florescia. Inicialmente o garoto sentia uma pontada em seu âmago sempre que cada história de vida a ele era contada, e pouco a pouco essas pontadas pareciam doer cada vez mais, crescendo juntamente com um sentimento de compaixão e melancolia. Conforme crescia e escutava mais relatos, o pequeno Higashikata logo entendeu que não importa o quão diferente cada humano é um do outro e quais caminhos buscam trilhar, há sempre uma coisa que todos têm em comum. Sofrimento. Para Akira, o resumo da vida desses seres peculiares era sofrer. Até mesmo quando sentem prazer, eles ainda sofrem.

Entretanto, mesmo que todos sofram, podem alcançar a paz e a iluminação eterna no momento em que sua alma deixa o mundo humano e segue para a sociedade das almas. Era isso o que o jovem pensava, mas após certa altura se deu conta que nem mesmo ali estavam a salvo da maldição da vida humana. E viria a descobrir alguns séculos depois de que haveria almas que jamais encontraria Rukongai e sua beleza natural.


Aproximadamente cem anos após seu nascimento, o garoto retornaria para o pântano no qual foi concebido. Ao centro daquele local, o “ventre” do qual havia sido gerado ainda se mantinha intacto, mas seu “fruto” já não era mais o mesmo do momento em que surgiu. Seus pés tocavam aquele lamaçal gigante enquanto meditava, algo que Akira buscava realizar de tempos em tempos, retornar até aquele bioma o ajudava a pensar e entender seus questionamentos acerca dos mundos.

No momento em que seus olhos se abriram suavemente, pôde vislumbrar uma criatura sentada da mesma forma que si do lado oposto daquele lago. Diferente de si e também de todas as almas que vivam na sociedade, aquele ser tinha um corpo extremamente magro, acompanhado de manchas negras. Seus olhos eram totalmente amarelos tendo sua íris da mesma cor que sua esclera, o único contraste era em sua pupila branca. Tendo uma postura completamente errada junto de seu semblante desgrenhado, aquela “pessoa” emanava uma aura de sofrimento maior que qualquer um que Akira tenha visto em outro momento de sua vida. Tudo levaria a crer que fosse uma alma doente, se não fosse por uma máscara quebrada em algumas partes a qual levava em seu rosto.

Em um instante de compaixão, o jovem Higashikata pulou e atravessou aquele grande lamaçal, buscando avaliar e ajudar a situação do desconhecido. Desacostumado com qualquer tipo de misericórdia consigo, um espasmo involuntário de auto-defesa o fez pular em alta velocidade para longe logo após rebater as mãos de Akira para longe. Está assustado. Com movimentos suaves e demonstrando fragilidade, o nascido da lotus fez o possível para demonstrar que não era nenhuma ameaça e sim o contrário, era alguém disposto a auxiliar aquela alma perdida em sofrimento. Pouco a pouco, estavam frente a frente, olhando nos olhos um do outro, ambos se deram conta que naquele instante encontraram um amigo.

Gyutaro. Este era o nome da alma do pântano, que posteriormente explicaria a Akira que pertencia à raça dos hollows. Ele havia conseguido entrar na sociedade das almas há cerca de um mês e, buscando viver tranquilamente, decidiu se esconder e se abrigar dentro dos limites do pântano.

O garoto ficou incrédulo ao saber o que era aquela raça e como ela se originaria, todas as suas suposições sobre os humanos e o fim de seu sofrimento iria por água abaixo ao descobrir que suas almas poderiam se perder em meio ao caos e ruínas. Não soube como reagir a todas as revelações feitas pelo seu mais novo amigo, apenas o envolveu com seus braços e deixou suas lágrimas escorrerem. Ali, Akira jurou ter como seu objetivo auxiliar as almas humanas a alcançarem a paz em suas vidas póstumas e levar os hollows para o caminho da iluminação.


Os anos se passaram e os dois se viam diariamente no pântano, Akira sabia que não poderia tirá-lo de lá, afinal na hierarquia criada pelos Shinigamis, Gyutaro seria visto como uma ameaça.

Durante as conversas que tiveram, o garoto da lotus decidiu em entrar para a academia dos Deuses da Morte, sendo assim a única alternativa vista por ambos para que Higashikata conseguisse realizar seu objetivo de ajudar tanto os Hollows quanto os humanos, afinal, não poderia fazer nada enquanto sempre preso na Sociedade das Almas, deveria sair para os outros mundos e isso só seria possível sendo um Shinigami.

Sua formação veio após pouco tempo, com um talento nato para o manuseio de sua espada e técnicas de combate somada a sua grande concentração de pressão espiritual não foi um problema para o jovem se destacar perante seus companheiros. O primeiro passo para seus planos havia sido dado e sua felicidade era tão grande que seu instinto foi correr de volta e contar a novidade para Gyutaro. Finalmente! Assim nós dois poderemos sair daqui e dar um novo caminho para as almas perdidas e submersas em sofrimento!

Algo está errado. Ao pôr os pés dentro dos limites do pântano, Akira pôde sentir o ar daquele lugar mais pesado. As árvores estavam inquietas e os ventos sopravam o alerta aos ouvidos do rapaz. O que o mais novo Shinigami temia aconteceu. Gyutaro havia sido atacado por membros da Gotei. Ao tentar ir em suporte a seu amigo, já não pôde fazer mais nada além de segurá-lo em seus braços e chorar enquanto o restante de sua vida escorria por entre suas mãos. Perdoe-os, meu amigo. Eles não sabem o que fazem. Ainda em suas últimas palavras, o hollow se manteve com um grande sorriso no rosto ao perceber que sua última visão seria o rosto daquele que outrora o “salvou”.

Por abrigar e esconder um hollow nas imediações da Sociedade das Almas, Akira foi condenado a cumprir cinco mil anos em um nível intermediário da Grande prisão subterrânea Central chamada Muken pelo crime de terrorismo e tentar derrubar o equilíbrio da Soul Society. Durante todo este tempo, o jovem Higashikata nunca desviou de seu objetivo, apenas o reforçou cada vez mais a cada dia que passava retido naquele local, longe de tudo e todos.

Aqueles corredores eram quietos a não ser pelo barulho que cada prisioneiro fazia em sua cela, mas naquele dia em questão algo mudou. Passos pesados atravessavam aquele ladrilho gelado, uma voz rouca resmungava com o então guarda sobre como seus ossos velhos doíam por ter que descer cada degrau daquele lugar e como isso iria prejudicar sua “caça” a belas jovens no período noturno daquele dia. Logo os barulhos cessaram e então se deu a vez da grande porta de metal a sua frente se abrir. Visita? O guarda então saiu de sua vista e voltou para seu posto. Tá esperando o que, garoto? Levanta essa bunda branca daí e vem comigo, vamos que eu to com fome e muito velho pra ficar nessa espelunca fria e escura. De natureza descontraída e sem ligar muito para as opiniões dos demais, o antigo taichou da nona divisão teria solicitado para que o restante da pena de Akira fosse cumprida prestando serviços junto a ele em sua divisão.

Agora apenas tendo cumprido 150 de 5000 anos, Higashikata Akira se tornou um dos membros Nona Divisão da Gotei 13. Livre novamente, era hora de fazer seus planos acontecerem.