Uma vez, num outro plano, Shieda Kayn fora alguém; um nobre primogênito de uma proeminente família do japão. Teve sua educação rígida, conteudista, exaustiva, repetitiva; etiqueta, bons modos, física, cultura, línguas estrangeiras, história, artes, pintura, filosofia e política. A mãe, no tempo, encarnava a figura do vigia, sempre atenta a Kayn, certificando-se que sua formação estivesse a plenos pulmões, para que fosse o jovem mais brilhante do país, um nobre da mais alta estirpe. Contudo, a fera rebelde, indomável, que habitava a alma do garoto não pôde ser contida por muito tempo, e, aos treze anos, Shieda Kayn desertou da prisão que havia sido sua casa até então, vagueando à matroca pelas ruelas mais longínquas que conseguiu encontrar, sumindo pelas sombras das marquises.

Esteve desaparecido por meio ano, insidiando-se das autoridades que o caçavam a mando dos pais, e àquela altura já tinha estabelecido uma certa base de apoio, composta por alguns mancebos delinquentes, órfãos e forasteiros que encontrou enjeitados. Criou-se ali, com eles, usou de seu conhecimentos para angariar finanças, e fez, num curto espaço de tempo, o diminuto bando tornar-se algo, algo na vereda de uma possível Organização. A ganância gritou mais alto, entretanto, e dois anos após deixar seu palácio de barras de ferros, Shieda Kayn foi delatado pelos seus irmãos, por aqueles que havia confiado e erguido. Sua liberdade, barganhada por algumas moedas, sua confiança vendida a seus algozes.

Então, emboscado e novamente preso.

Shieda Norya e Shieda Okami não tiveram alternativa senão envia-lo a um reformatório, nas montanhas norte do arquipélago, para que os clínicos e psiquiatras pudessem quebra-lo um pouco mais. Precisavam dele quebrado, de outra forma jamais teriam o brilhante Shieda feito, e o nome da família exaltado. Pouco importava o que Kayn tinha a dizer sobre aquilo, o legado Shieda falava mais alto, ressoava, abafava os gritos rebeldes do garoto inconsequente. Demorou até que entendesse, mas entendeu.

Seis luas se passaram, e com vinte um anos, agora maduro o suficiente e emancipado psicologicamente, o fidalgo, em uma das visitas corriqueiras dos pais, teve a oportunidade e fugiu do reformatório. Livre. Apanhou o veículo do pai, que estacionara-o a frente do casarão médico e pisou fundo no freio, tão fundo quanto o vazio que começara a encher a partir daquele instante. Livre. Estava, rápido, vendo todos passarem por ele a uma velocidade que não podia ser compreendida. Livre. Pessoas, árvores, animais, via-os como vultos distorcidos. Livre. Estava tão rápido que brilhavam à sua vista, tão rápido que escapavam à sua percepção. Cintilantes, e então a ausência...

Luz demais havia-o deixado cego, e a escuridão o reclamou num rompante eterno. Livre...

A injustiça pisada e o ódio silenciado da alma de Shieda Kayn, uma vez mais foram materializados, num plano aparentemente sem fim. Sua composição era óssea agora, monstruosa, vertebrada, inumana. O mundo sem propósito que o defrontava era quase uma efígie de si mesmo. Buscou nas areias inférteis daquela desolação um sentido, e encontrou nada, senão outros, que como ele, buscavam uma razão. Viu o mal em alguns, o verdadeiro mal, aquele que não tem cura, incorrigível, corrompido até o fim, e os extirpou o quanto pôde. Shieda Kayn não era maligno, apesar de tudo, mas longe de ser um benfeitor.

Entretanto, rumando pelas areias infindável, encontrou algo, ou melhor esse algo o encontrou.

ーHollow? ー parecia confuso, mas finalmente tinha um nome para aquilo que se tornara. Seu corpo agora era uma mistura encouraçada de músculos, ossos e fibras. Demoníaco.
ー Sim, como você. ー a coisa disforme com uma máscara feita de ossos o respondeu. ー Todos somos, mas me parece que você é um tipo raro de nossa espécie.
ー Especial, é? ー já estava farto de ser especial.
ー Sim, há outros como você, poderosos. O orgulho de nossa raça. Lá. ー apontou para o horizonte vazio, com um céu escuro e grãos de areia a perder de vista.
ー Eu devia ver alguma coisa? ー já estava perdendo a paciência.
ー Siga naquela direção e verá.

Foi o que fez, e ao fim do trajeto deparou-se com a única coisa que se elevava acima das dunas do deserto; um palácio, feito de pedra branca, alvo como uma alma no paraíso. Dentro daquele complexo, de fato, outros como ele se aglomeravam, digladiando-se entre si para provar força. Tudo nesse mundo é força. Derrotou, devorou e ceifou outras existências menores que as dele, algumas com mais ímpeto do que outras, as acumulando em seu próprio ser, até que derme e cabelo abrissem espaço pela couraça densa e ossos putrefatos, e sua forma humana foi retornando acanhada.

ー Você foi escolhido como a Sexta Espada, Kayn. ー disse-lhe a figura feminina e humanoide com rosto ossificado e esquelético. O contraste entre ele e ela eram evidentes. Àquela altura, Shieda Kayn aparentava muito mais seu antigo eu do que a forma monstruosa com que chegara aquele plano.
ー É, e em breve a Primeira Espada. ー retrucou-a num tom ousado. Apanhou a foice e partiu, com a ponta da arma rasgando a areia, deixando um rastro como a garra de um animal.