Shirogumo sentava-se em sua mesa, olhando confusa para as pilhas de papelada que lhe aguardavam em seu novo cargo como tenente. A ascensão rápida ao cargo lhe garantiu a admiração de colegas que a viam como prodígio, mas também contribuiu para que chegasse ali sem a devida preparação para lidar com ele, ainda mais porque, estando numa divisão atualmente sem capitão, a carga de trabalho se acumulou nela. Além disso, essa admiração era acompanhada de expectativas, e, para alguém que já tinha dificuldade em lidar com pessoas, o estresse disso tudo estava insuportável. Ela precisava de um respiro, de uma zona de conforto, de seu lar. E é pra lá que ela foi.

Apesar da casa não contar mais com sua presença, os rumores sobre sua maldição continuaram afastando as pessoas da região, muito para a alegria de Heisei, que não detestaria nada mais do que ver alguém naquele momento. Caminhando porta adentro e olhando para o porão, cujo teto falso não foi recolocado depois de descoberto pela patrulha de Shinigamis que levou a garota para Seireitei, ela sentiu uma forte nostalgia: era a primeira vez que retornava àquele lugar desde que o deixou pela primeira vez, para ingressar a academia. Mas percorrendo os olhos pelas prateleiras  que costumavam conter os livros e suprimentos que a esse ponto já tinham sido levados, seja pelos Shinigamis ou por moradores de Rukongai, para sua surpresa, ela sentia não apego, mas vazio.

Outra surpresa foi que, mesmo ali, ela ainda se sentia frustrada. Era um alívio estar sozinha, mas de resto os sentimentos negativos a seguiram. O problema vinha de dentro, e só nesse momento ela entendeu o que lhe incomodava. Pela maior parte de sua vida, ela era o todo. Nada existia além dela e dos livros. Seus talentos, conhecimento, progresso, tudo era absoluto. Quando outras pessoas passaram a existir, essas coisas eram agora relativas. Podiam ser comparadas, e portanto julgadas.

E, pra complicar mais, desde que ela se lembra a sua dedicação ao estudo do Kidou era sua vida. Era tudo o que fazia e seu propósito, e agora existiam pessoas melhores que ela nisso. Não na academia, onde ela se orgulhava muito de se destacar enquanto aluna nessa área, especialmente no que diz respeito a Bakudou, mas agora ela era uma tenente. E olhando para os lados ela via outros tenentes com capacidades de Kidou comparáveis às dela, e bem superiores em outros aspectos. Suas habilidades, num curto período de tempo, foram de tudo que existia para apenas razoáveis.

Então ela sentava num canto da casa, encarando as paredes desse cômodo superior que ela nunca habitou, e batendo o pé repetidamente contra o chão. Ela tinha plena confiança em seu talento, e acreditava no seu potencial de ser a maior mestra de Kidou do mundo, visto que, em seus olhos, ela já havia sido. E exatamente por isso ela se irritava com seu nível atual, não só o de magias mas num geral. Ela queria ser melhor que os outros tenentes, melhor que os capitães. E a velocidade em que ela ficava mais forte, que nunca a tinha incomodado, agora era insuficiente.

Nesse momento uma outra figura adentrou a casa. Ao ouvir os passos próximos, o coração de Shiragumo disparou enquanto ela virava o rosto em direção à porta, mas voltou a relaxar quando viu que era apenas um gato. Sorrindo, ela se aproximou do bichano para lhe fazer carinho. Animais eram mais fáceis. Pessoas pensam em segredo, agem com segundas intenções, se incomodam e guardam rancor, e têm todo um senso comum e etiqueta que sempre assumem ser compartilhado por todos, mas sobre o qual Heisei não entendia nada. Mas com esse gato ela podia só expressar o afeto que imediatamente sentiu afagando sua nuca, sem se preocupar com o que ele pensaria disso.

Ou é o que ela achava, pois ao ver a menina chegando perto, o felino rapidamente pulou para o lado, e, impulsionando as pernas traseiras contra a parede, deu um segundo pulo no ar, colocando grande distância entre eles. Fugir dos problemas não era uma opção, para se livrar da frustração ela precisava treinar. E se esse gato fosse tão ágil quanto parecia ser,  ela tinha uma ideia de como.

- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku!

Correntes luminosas de reiatsu tilintavam enquanto percorriam pela sala, atingindo apenas o chão, pois o gato já não se encontrava mais ali desde que Heisei começou a conjurar seu Kidou. Ela sabia que esse seria o resultado, mas não podia deixar de se sentir irritada. A maior parte do seu treinamento foi feito em isolamento, com o foco único em aprimorar a técnica. Não havia preocupação com uso prático num alvo, muito menos em movimento.

Ter vivido em cativeiro também não contribuiu com sua agilidade: tendo feito pouquíssimos exercícios físicos ao longo de sua vida, não era particularmente veloz nos seus movimentos. O resultado era uma excelente conjuradora de Kidou, mas que passava certas dificuldades no combate contra oponentes que soubessem explorar esse ponto fraco.

Se ela pretendia ser uma tenente digna, ela precisava ser capaz de usar suas ferramentas de luta contra qualquer um. E um gato não era exceção.

- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku!

E o felino rolou para o lado, saindo do caminho das correntes.

- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku!

Ele correu para o outro lado da sala, desviando habilmente.

O gato lambia suas costas, já despreocupado com a menina que a princípio julgou ser uma ameaça. Heisei chorava em frustração, sem saber o que fazer. E o que lhe restava era continuar tentando.

- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku!
- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku.
- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku…

Horas depois, ela pingava em suor, mas nem considerava a possibilidade de parar enquanto não acertasse o animal. Sua mente, porém, já residia longe dali, pensando no seu tempo na Academia. Desviou por baixo. Os colegas eram amigáveis e tentaram se aproximar dela, mas era a primeira vez que ela via gente, e não sabia lidar. Correu para o lado. Todos esperavam que ela agisse levando em consideração o que eles pensariam, mas ela não sabia prever seus pensamentos assim. Pulou por cima. Prever seus pensamentos…
Shirogumo parou, e encarou fixamente o gato, que a olhava de volta na expectativa de outra corrente para esquivar.

- Hadou N. 32: Oukasen!

Surpreendido pela rápida explosão que se aproximava, o gato pulou desengonçado em direção à parede, desesperado para se afastar imediatamente, e a Shinigami não perdeu um sequer momento.

- Bakudou N. 63: Sajou Sabaku!

A corrente agarrou o felino que colidia contra a parede, incapaz de mudar sua trajetória a tempo. Incapaz de conter a alegria mas também exausta, a garota apenas caiu para trás abrindo um enorme sorriso enquanto deitava. E ela seguia incapaz de se levantar muito depois do gato se soltar e fugir veloz da casa. E lhe restava refletir.

Eu estava certa sobre precisar ser capaz de usar meus pontos fortes perfeitamente para ser forte. Mas o Kidou não é minha virtude, ele é um meio. É minha mente que me pertence, e a ela que eu pertenço. Minhas armas são um caminho para que eu a use em combate, mas o que eu tenho que aperfeiçoar antes de tudo é ela, não só as ferramentas.

Já amanhecendo, Heisei caminhava de volta para Seireitei, e ela observava as ruas de Rukongai enquanto o alívio do seu progresso já voltava a se substituir pelo estresse do trabalho acumulado que sabia que teria de fazer para compensar o dia anterior.

Eu deveria adotar um gato…

Considerações: