ㅤㅤRememorou uma vez, uma confraternização de familiares. Um primo. Ambos com treze.

ㅤㅤSobre o adarve do castelo, os dois imberbes davam largada, deixando para trás todas as preocupações que não tinham. De cima, sentinelas petrificados tracejavam as pupilas para acompanha-los, e em baixo, um declive colossal desembocava no fim do vale de Battló. Alles, o filho e herdeiro do Arquiduque Alexander De Alcázar, o tinha sobrepujado aquela vez, e provara ser o mais rápido na Disputa Alta, nome que tinham dado àquela modalidade de jogo. Alles era o filho herdeiro, portanto não era cortês que, fosse quem fosse, o derrotasse numa gincana, mesmo a mais insignificante delas. Mas, Abbel não ligava. Sentia os olhos condenatórios e altivos da tia e esposa de Alexandre, Leona De Alcázar, o observando sempre que superava Alles em alguma coisa, tal como os olhos desconfortáveis e preocupados de sua mãe, Eva, sempre que era destaque nos banquetes e treinos de pátio. Não se preocupe mãe, sei meu lugar, era o que sempre reiterava monológico.

ㅤㅤCerta vez, o astrólogo do castelo, Salazar Duerte, avisou a Abbel que haveria um acontecimento no céu, e que tal fenômeno só voltaria a ocorrer oito anos mais tarde. Havia uma festa acontecendo no condado de Cielo àquela noite, e a corte festejava no salão principal, juntamente com suas senhorias e os ilustres convidados estrangeiros. O pai, a mãe e a irmã de Abbel estavam todos no salão quando ele contou a Alles sobre o evento divino às portas.

ㅤㅤ— Vamos, seu tolinho, o mago disse que durará só alguns minutos e depois disso nunca mais retornará. Só temos essa chance. — Instigou o primo a acompanhá-lo.

ㅤㅤAlles não tardou a segui-lo.

ㅤㅤQuando se puseram para fora do castelo, sobre a escadaria externa, lufadas de vento chocavam-se violentamente contra eles, como se a natureza os dissesse para que retrocedessem caminho. O céu cinzento e nublado do fim de tarde era quase tão negro quanto o da madrugada, e visão tênue e forçosa.

ㅤㅤ— O que mais o mago disse? — O herdeiro perguntou, enquanto se agarrava a amurada da escadaria com seu manto de pele esvoaçando incessantemente.
ㅤㅤ— Disse que é mágico, que a escuridão vai engolir o sol. — Abbel respondeu, com um entusiasmo nada típico para uma situação como aquela.
ㅤㅤ— Engolir o sol? — Indagou com a voz arfante, já começando a temer a ventania. — Os ventos estão muito forte, Abbel, não está com medo!?
ㅤㅤ— Eu já disse que não tenho medo de nada. — Retrucou inabalável. Seus longos cabelos eram chacoalhados de cima para baixo, e seu sobretudo de linho purpura não encostava em sua panturrilha há vários minutos.

ㅤㅤQuando finalmente alcançaram o topo da ameia da torre da astronomia, uma chuva fina foi até eles. Está começando, pressentiu, e apertou o amuleto vermelho que envolvia seu pescoço para todo o sempre, aquele que chamava de Behelit.

ㅤㅤ— Que lástima, ficaremos ensopados! Como voltaremos ao baile!? — Praguejou o pequeno herdeiro. Está começando, reafirmou com os olhos a esquadrinharem os céus em busca do primeiro ponto escuro que manchasse a resplandecência do sol. Apertou mais o Behelit. — EI, ME ESCUTOU!? EU ESTOU FALANDO COM VOCÊ! — Ergueu o tom. Abbel não tirou os olhos de cima, mas percebeu que havia medo no tom de voz do primo.
ㅤㅤ— O que quer que eu faça? — Não havia fração sequer de sentimento em sua fala.
ㅤㅤ— Me leve de volta, eu quero descer. AGORA, É UMA ORDEM! — Exigiu Alles, filho do Arquiduque Alexandre de Alcázar, herdeiro e futuro Arquiduque do ducado  de Cielo. O pequeno de cabelos esbranquiçados desceu os olhos até ele.
ㅤㅤ— Você não pode descer agora, não sem antes vermos o eclipse. — Voltou a afirmar. Àquela altura, uma chuva bem mais volumosa caia, empapando os trajes de ambos. Alles estava tão furioso quanto era possível para um menino de sua idade.

ㅤㅤComeçou...Viu um ponto negro minúsculo contra o sol, gradativamente ganhando espaço no círculo branco que se centralizava aos céus todos os dias. O herdeiro continuava a exigir que descessem.

ㅤㅤ— Se você ficasse quieto, poderíamos ver o eclipse e descer. — Apontou para o fenômeno em curso. Alles cessou a fala quando o viu embeber o sol de escuridão. Uma noite artificial lentamente começara a roubar o espaço do crepúsculo de outrora. Uma sensação transcendental subiu pela espinha de Abbel. O que é isso!? Quando o sol tornou-se uma estrela negra o topo da ameia em que estavam transformou-se num bolsão de negrume. Abbel não conseguia desviar os olhos daquilo. Os deuses enviaram isso...? Teve o pensamento interrompido com a súbita movimentação de Alles.
ㅤㅤ— Estou descendo! — Bradou resoluto e atemorizado, apalpando as mãos na amurada do merlão de pedra a procura de alguma seteira ou apoio sabidamente sólido para que chegasse a saída do cume da torre.
ㅤㅤ— ALLES! — O olhou na escuridão, com a chuva, agora torrencial, castigando os dois. Se aproximou, sem apoio ou escoro, como se soubesse que não iria cair, não importasse o que acontecesse. Seus sapatos ondulavam a poça de água que agora estava sob eles, enquanto o dilúvio os imprensava do céu.

ㅤㅤFoi então que o herdeiro de Alexander De Alcázar, futuro senhor de mais de cento e vinte mil hectares de terra cultivável, tocou-se do que o estava à espreita.

ㅤㅤ— O-o que você está fazendo!? — Indagou, dessa vez visivelmente amedrontado, ainda que não se pudesse vê-lo de fato. — O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?? FICA LONGE DE MIM! — Bradou afastando-se dos passos de Abbel, em direção a segurança da amurada, até chegar a ela e ver-se sem saída. — EU ORDENO QUE PARE ONDE ESTÁ! — Sentiu a pedra contra suas costas e instintivamente chutou a poça de água em direção a Abbel, numa tentativa de desestimula-lo a prosseguir.
ㅤㅤ— FICA LONGE DE MIM! EU ORDENO, EU ORDENO! — Movimentou-se à esquerda desesperadamente, enquanto disparava jatos de água criando uma barreira imaginária entre os dois. Sabia que a ameia era abobadada, então se continuasse em círculos chegaria cedo ou tarde até a porta da escadaria. E chegou.

ㅤㅤUm trovão rufou naquele milésimo, alumiando o palco da desgraça e colocando-os frente a frente. Os olhos azuis de Abbel confrontaram os verde oliva de Alles.

ㅤㅤ— Você não queria descer? — Não havia trovão para iluminar, era só escuridão. — Então desça! — E com ambas as mãos empurrou o herdeiro de Cielo escada abaixo. Vinte metros em formato caracol levaram o menino até a base da escadaria em poucos segundos, já desacordado. Abbel não tomou nota sobre o que tinha feito por longos minutos, permaneceu no topo da ameia a observar o eclipse. Espremeu o Behelit.

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