Kuina engavetou a última leva de papeis.

Era manhã, mas seus olhos estavam pesados. Ela não havia dormido esta noite. Ainda não havia parado para pensar nisso, mas mais tarde ela se surpreenderia ao perceber que passou a noite toda em claro no gabinete. Assinando, lendo, relendo, escrevendo, engavetando. Pensando. E não o fazia por causa do trabalho. Não. O fazia porque precisava de alguma forma aquietar a sua mente, que com todas as forças se recusava a sucumbir ao sono.

A conversa com Aizawa se repetia como uma engrenagem na sua cabeça. A criatura. Que diabos era aquela criatura? Por que não foi informada de sua captura? E porque sua reiatsu era igual a de quando Ayato sumiu? Essas perguntas, bem como cada um dos desaparecimentos, surgiam na sua frente como portas trancadas dentro do gabinete. Perto da varanda, podia ver as sombras de Ayato, Awashi e de todos os outros Shinigamis que sumiram como folhas ao vento. Ela jazia no escuro, olhos dançando em busca da chave dourada e reluzente que conseguiria abrir todas aquelas fechaduras com um clique de razão. Quando sacudiu a cabeça, tudo voltou ao normal. As paredes vazias e banhadas pela luz pálida da manhã. As únicas sombras na varanda eram as linhas paralelas projetadas pela grade. "Dormindo acordada", pensou.

Ela realmente precisava descansar.

Seus olhos quase se fecharam sozinhos, mas ela voltou a si ao sentir o frio metálico da zanpakutou nos dedos. "Não posso parar ainda", pensou, e de repente seus sentidos se aguçaram. "Ainda faltam onze."

E então, se levantou. Envolveu-se do manto branco de comandante. Uma brisa gelada lavou o seu rosto, e ela se sentiu bem.

"Deve chegar a qualquer momento, agora... aquele homem."

Considerações:

- Credenciais? Eu não lembro onde deixei as minhas. Será que eu não posso simplesmente entrar? - Sorria. Os guardas se entreolhavam cerrando o punho com suas lâminas - Aparentemente não. -  O clima era pesado. Eram dois shinigamis aparentemente jovens, em torno de seus cem ou duzentos anos se fosse estimar - Crianças - comparadas ao homem a sua frente.  Talvez se fossem mais velhos reconhecessem sua face - Ela deve estar aqui em algum lugar. - Tudo havia começado com o desaparecimento de um capitão... Depois um tenente, outro e mais outro. Quando e deram conta, mais da metade dos esquadrões da Gotei 13 havia desaparecido, e derrepente até o comandante geral havia sumido sem deixar rastros. No ínicio eles tentaram manter as coisas embaixo do tapete, mas quando um comandante desaparece... Bem, a coisa costuma ficar feia. - Eu tenho quase certeza que estava aqui... - Não era de se admirar que as medidas de segurança fossem redobradas, e homens substítuidos. Nesse caso não só algumas das divisões foram inteiramente refeitas, como também boa parte dos subordinados da instituição haviam sido trocados. A insegurança e desconfiança pairavam no ar, aqueles eram tempos sombrios, com muitas perguntas e poucas respostas. Era como se todos fossem suspeitos. - Está aqui, achei... - Sorria mais uma vez, de forma despreocupada.


Aqueles corredores traziam alguma nostalgia a medida que caminhava. O amadeirado permanecia o mesmo de anos atrás - ainda que não fosse um exagero dizer que o lugar poderia ter passado por uma reforma ou duas - As costas de Sei caminhava um dos Shinigami da entrada. Algum tipo de protocolo de segurança, do qual o Shinigami mais velho apenas concordara afim de evitar problemas, uma vez ciente dos recentes acontecimentos. Mesmo o documento com assinatura da Central, submetido a uma minuciosa inspeção por alguns minutos parecia ser o suficiente para acalmar os ânimos. - Aguarde. - Anunciou o guarda, indicando para que a visita aguardasse, enquanto ia na direção da sala do comandante geral.

Considerações:

ー Akado-sama, Ei Sei-sama está aguardando do lado de fora ー anunciou um oficial. Kuina suspirou. A mão direita massageava a testa.

ー Mande-o entrar.


ー Eu tenho que admitir... dentre os candidatos que eu tinha em mente, você era o último que imaginei ser escolhido pela Central.

A comandante estava de pé. As mãos atrás do corpo, apoiando-se na mesa. Seus olhos varriam o novo capitão de cima a baixo, analisando o que sua cabeça cansada permitisse. Ei Sei era um dos veteranos. Tinha meio milênio de experiência como Shinigami. Kuina conviveu apenas um ano com Ayato. Comparado àquele homem, que serviu a ele diretamente por séculos, ela e o comandante anterior não passavam de conhecidos. A garota sentiu a pele formigar. Diante de pessoas como ele, ainda não havia se acostumado a assumir o papel de superior.

ー Soube que recusou o posto de capitão três vezes no passado ー disse, fitando-o. ー Me pergunto o que o fez mudar de ideia na quarta vez.

Houve uma pausa e Kuina olhou para a varanda. Para a Seireitei. E em resposta um vento rasgou o gabinete.

ー As coisas estão mudando. Muito rápido. Pouco a pouco, a Gotei está renovando seus membros. Imagino que a mesma coisa deve estar acontecendo no Hueco Mundo neste exato momento.

Kuina ajeitou o cabelo e Sei, por um momento, poderia ver a hesitação nos seus olhos. Ombros tensos, mãos inquietas. Ela analisava as próprias palavras como se cada uma pudesse apunhalá-la pelas costas. Era um nível de meticulosidade acima do comum, quase paranoico. Completamente diferente de Ayato, cujo senso de urgência às vezes parecia inexistente. Mas suas expressões, ingênuas e exageradas. Honestas. Isso sim, era igualzinho a ele.

Houve silêncio. E então sua voz saiu calma.

ー Logo o caos vai começar. Eu sinto isso. O que está acontecendo agora pode parecer ruim, mas é só a calmaria. E nós, a Soul Society, não estamos nem um pouco preparados para a tempestade. Ei Sei, sei muito bem que você tem uma longa história com Ayato. E sei muito bem que seus anos de experiência como um Shinigami não se comparam aos meus. Mas no presente momento, sou eu quem lidero a Gotei 13, e não posso me dar ao luxo de liderar um exército que não confia em mim. Por isso, se tiver alguma ressalva com relação a mim e à minha posição de capitã-comandante...

Agora é a hora de falar.

Considerações:

- Yo, me desculpe pela demora, tive alguns problemas com seus amigos ali. - Dizia o shinigami enquanto gesticulava com o polegar apontando as costas. Por um breve instante seus olhos percorriam a sala, indo desde o carpete, até o amadeirado da escrivaninha inundada de relatórios como de costume, até a varanda, agora revestida de uma cortina de coloração azulada. Por fim, seus olhos foram de encontro aos de Kuina. Seu semblante era atípico, ou poderia ser considerado até uma antítese ao esperado de alguém em seu posto. Substituiam-se o cavanhaque e os cabelos brancos de seu antecessor, por um rosto bronzeado e jovial acompanhado de cabelos negros como noite e um corpo pequeno e feminino, constratando completamente da figura que se apresentava a sua frente; um arquétipo de soldado semi-milenar, um vetereno de inúmeras batalhas, e que carregava as marcas de suas vitórias consigo. Nenhum desses detalhes passavam despercebidos pelos olhos de Ei Sei, que jamais permitiria-se basear-se apenas em algo tão superficial quanto uma casca para fazer seus julgamentos. Já havia vivido tempo o suficiente, para saber que poucas coisas eram tão perigosas quanto uma mulher.  O tratamento que lhe dava era respeitoso, e de indiferença quanto a sua idade, uma vez que teoricamente, era sua chefe.

Kuina fazia o mesmo. Inspecionava o homem lhe enviado pela central, da cabeça aos pés. Ei Sei não disfarçava o desconforto, apesar de não se importar ao ponto de manifestar-se. - Acredite, para mim também foi uma surpresa. - - Será que ela leu os relatórios? - Pensou ao mesmo tempo que a respondia, levando uma das mãos até a cabeça e suspirando. As palavras saiam de sua boca de forma casual. Já ela parecia um pouco receosa, pouco antes de fazer uma nova pergunta. - Como imaginei você vai mesmo direto ao ponto não? - Ei Sei sorria com um estranho charme despojado, antes de afiar seu olhar como uma adaga. - De fato uma boa pergunta. - Suspirou novamente levando a mão ao queixo - A verdade é que nunca me pareceu necessário, uma vez que sempre haviam pessoas mais dispostas, ou preparadas para isto. Sempre me pareceu uma loucura assumir uma responsabilidade como esta.... Isso é claro, até as pessoas começaram a desaparecer como vento. - Pontuava de forma fria. Seus olhos afiados continuavam encarando a Shinigami, por um breve instante, antes de voltar a sua habitual forma leve, e despojada. - Além do mais, não tive outra opção. Eu Central me obrigou a assumir o cargo. - Sorria de forma leve. Ei Sei já havia entendido que tipo de pessoa Kuina era, e se até aquele momento ela não havia chegado a uma conclusão acerca do Shinigami, seu olhar havia de responder que tipo de pessoa era.

Enquanto ouvia o monologo da comandante atual, Ei Sei caminhava em direção da varanda. Seus olhos iam de encontro ao horizonte, permitindo que uma breve brisa lhe atingisse os cabelos e mexesse as cortinas a sua frente. - O nascer do sol daqui é realmente algo não? - Pausava antes de voltar sua atenção para mulher. - Não tenho nenhum tipo de contraponto a sua liderança... E ainda que tivesse? O que posso fazer? Sou apenas um subordinado. Quem quer ter problemas com o próprio chefe?... Tão pouco cabe a mim o julgamento acerca de suas atividades, acho que como capitão já tenho problemas demais para lidar. Além disso, também é de meu interesse particular saber o que aconteceu com Ayato. - A ultima frase parecia justificar sua resposta anterior, e caia como uma cerejo no bolo. Seus olhos se afiaram novamente por um instante, como os de um tigre. - E você possui algum tipo de ressalva quanto a minha liderança? Ainda deve haver tempo para redigir uma carta para a Central pedindo outra pessoa. -

Considerações:

Kuina riu em silêncio diante da última pergunta.

ー Minha influência na Central 46 já não é mais a mesma ー disse ela, e então ergueu o olhar. Seus olhos distantes viajaram por algumas memórias. A verdade é que, a esse ponto, já não entendia mais qual era a sua relação com os Juízes. Em um ano passou de espiã, trabalhando diretamente com eles, para a regente da Gotei 13, uma organização à parte do Palácio. Ela entendia o porquê, mas no fundo também não entendia. Então suspirou, como sempre fazia quando pensava nesse dilema. ー Ainda assim, não tenho motivos para pedir sua troca. Até onde eu sei, Ayato confiava em você. Para mim, é o suficiente.

Dito isso, ela voltou para a cadeira e se sentou de pernas cruzadas. Aos poucos, pegou os papeis que sobraram e os engavetou. Com os desaparecimentos, sua mesa via-se enxurrada de pedidos de transferência, recomendações de cargos e pedidos de afastamento. Ela poderia muito bem passar horas assinando aqueles papeis só para que um refil fosse entregue à sua porta no fim do dia. Mas já basta de trabalho por hoje.

ー Ei Sei, você já deve saber que foi arranjada uma reunião entre a Gotei 13 e o atual regente do Hueco Mundo. Eu... Bom, eu não consigo imaginar como essa reunião terminará. Creio que ninguém na Soul Society consiga, para falar a verdade. Mas, ao menos, pretendo ir acompanhada de dois capitães. Você conhece a Seireitei muito melhor do que eu. Gostaria de ouvir a sua opinião. Dos capitães da atual Gotei 13, quem você levaria?


ー Já ouvi o que queria de você.

Ela desviou o olhar. Talvez um dia, quando o caos se assentasse ela o chamasse novamente. Nas últimas semanas o tempo parecia correr a mil quilômetros por hora, mas ela ainda queria ouvir mais sobre ele. Ei Sei era um dos poucos capitães restantes que possuíam uma relação forte com Ayato. Ela adoraria ouvir suas histórias, quaisquer que fossem. Mas não neste momento. Havia coisas muito, muito mais importantes a serem feitas.

Kuina cruzou os braços.

ー Ah, uma última coisa ー disse, antes que o homem deixasse o gabinete. ー O seu tenente... Kuramoto Aizawa. Talvez seja uma boa ideia conhecê-lo o quanto antes. Tenho a sensação de que a sua entrada como capitão não será nem um pouco bem vinda para ele. Se não tomar cuidado nas introduções, pode acabar perdendo sua única chance de conseguir a confiança dele.

Considerações:

O nome de Ayato ecoava pelas quatro paredes da sala quando dito, sendo sucedido por segundos de silêncio, coincidentemente ao mesmo tempo que uma leve brisa soprava pela janela. Ei Sei franziu o cenho. Por um instante pensou em questionar Kuina acerca das buscas, mas já imaginava que a resposta, provavelmente a mesma dos relatórios lhe enviados dias atrás, no qual a falta de informação detalhados e dados era perturbadora. Um dia ele estava ali naquela mesa no centro da sala no outro as 12:00 já havia desaparecido. - Que tipo de problemas você andou arrumando ein Ayato? - Titubeou por um instante. - Fico feliz que seja dessa forma! - Sorriu de forma despojada respondendo a aprovação de Kuina, que imediatamente partiu para o próximo tópico.

- Uma reunião? Hm... - O shinigami arqueou as sobrancelhas surpreso. - Nessa você me pegou haha! - Coçou a cabeça enquanto sorria de forma despojada. Certamente o homem era um dos Shinigamis mais experientes na atual Gotei 13 e em toda Seireitei, mas muitas das mudanças recentes haviam ocorrido em seu período de afastamento, estando a principal delas diante de seus olhos. Isto por dava um certo ar de "teste" a pergunta. Contudo, ainda possuía certo grau de familiaridade com as atividades e tradições de cada um dos 13 esquadrões, assim como com alguns nomes de Shinigami em atividade na Seireitei, logo dois nomes lhe vinham a mente como escolha óbvia. - O capitão da 6a Divisão, Noboru Ohta. E a capitã da 6a divisão, Komei. - Pontuou antes de prosseguir - Creio que ambos sejam os mais experientes e aptos para a incursão. - Fitou por um instante os nomes sob a mesa, ciente que Kuina já havia lido o histórico de ambos os recomendados. - Claro que eu também permaneço a sua disposição se for da sua vontade, mas sequer fui apresentado a meu novo esquadrão. Estas e outras burocracias demandam que muito de minha atenção permaneça dentro da Seireitei ainda...  - Completou antes de finalizar. - Mas bem, esta é apenas minha opinião. - Sorriu de forma leve.


Tanto a comandante quanto o capitão sabiam do desafio de sua tarefa, e em um dia atarefado para ambos não podiam se dar ao luxo de mais formalidades. Havia trabalho a ser feito, e já era em hora de Ei Sei reunir-se com seus homens. Antes de partir, Kuina tratou de abordar um ultimo tópico. - Kuramoto Aizawa... hm - O veterano ponderou por um instante e por mais que quisesse, mais uma vez absteve-se da pergunta. Preferia ver com seus próprios olhos. - Entendo. As coisas são como são, um passo de cada vez. - Disse enquanto se curvava levemente em um sinal de respeito. - Me permita saber se precisar de algo. - Virava de costas e deixava o lugar.

Considerações: