Quando humano, Alonzo Balmaceda foi uma das inúmeras vítimas da Batalha do Ebro. Sendo um dos homens mais experientes de sua unidade, perdeu a vida enquanto tentava evacuar o restante de sua unidade. Ficou preso no mundo por conta daquele momento: o temor da morte, a vontade de vencer a guerra e principalmente a imensa preocupação de tudo o que poderia acontecer. Aquela carga de sentimentos ruins se acumulou em seu peito até que a alma humana se transformasse em algo a mais.

Corrompido e em forma bestial, continuou seu trabalho em vida, atacando humanos que julgava inimigos e outras criaturas menores. Mas algo permaneceu ali. Ele não era um Hollow bestial, apenas com fome. Ainda possuía certa inteligência em seu ser. E sabia exatamente como se aproveitar daquilo.


Aqueles primeiros momentos foram carregados de confusão. Havia algo em seu âmago, um instinto animalesco. E algo que rivalizava, como se fosse sua parte racional, ainda um resquício extremamente humano. Mas não demorou mais do que alguns segundos para que ambos os sentimentos entrassem sem sintonia. Batalhar consigo mesmo não mudaria nada. Aquele conflito interno levaria a ruína. E ele não era mais uma presa indefesa.

Antes da transformação havia presenciado outros combatentes partindo aos céus enquanto ele havia ficado ali, amargurado e acorrentado. E agora, ele ainda estava no campo de batalha. E conseguia ver outros como ele: tanto se desprendendo de suas estranhas correntes quanto se tornando criaturas como ele. Nos outros, aquele estado de confusão parecia durar um pouco mais. E Alonzo, com sua máscara que não carregava nenhuma expressão, se banqueteou no meio daquele cenário de guerra. A mesma batalha que havia significado o fim de sua vida mundana também era o sinal de um avanço que ele nunca imaginou ser possível.

Ele esmigalhou as almas assustadas que ainda resistiam à corrupção e as engoliu como se fossem o manjar mais saboroso que existia no mundo. E ele descobriu que era uma criatura extremamente territorial. Se aproveitou dos mais fracos, que ainda tentavam entender o que estava acontecendo e daqueles cujos instintos ainda não havia lhes mostrado como sobreviver. Sobrepujou os mais fracos sem misericórdia, do mesmo modo que fazia quando estava vivo. A diferença era que dessa vez o castigo não era apenas físico: ele devorava a alma de seus semelhantes, e aquilo era seu combustível. Alonzo se sentia imbatível.

Ele se alimentada da alma dos mortos; se alimentava das criaturas semelhantes a ele e também dos soldados que ousavam cruzar aquela terra de ninguém. O chão daquela região berrava, encharcado de sangue. E ele, como fiel filho de sua pátria, acompanhava os clamores da terra. Onde havia derramamento de sangue, lá estava ali, como um abutre. Estava presente em grande parte dos últimos combates, sempre se alimentando dos soldados caídos e dos moribundos. Eram presas fáceis, mas ele não ligava. Não queria a honra de combater e vitórias, queria poder. Queria força. E sabia que só seria possível conseguir aquilo ao se alimentar da preciosidade que carregavam dentro do corpo.

Ele também aprendeu a fugir dos inimigos. A sensação estranha no pescoço, a ardência ao redor do corpo. Aquela pressão sobrenatural. Sempre que sentia que alguém mais forte se aproximava, ele se distanciava. Ele sabia que aquela pressão significa que o ambiente não era seguro. E quanto maior fosse a sangria, menos tempo ele tinha para se deleitar com os mortos. Alonzo chegou até mesmo a presenciar estranhas figuras libertando os espíritos presos e se degladiando com seus semelhantes. No fundo, ele não ligava. Significava menos competição.


Algo o puxava como uma âncora para um lugar desconhecido. E quando ele cedeu ao impulso e se atreveu a atravessar aquele caminho, se descobriu em um deserto inóspito e escuro. E sentiu uma sensação familiar, como se ali fosse seu lar. Não existiam humanos por perto, ele conseguia sentir. Tudo o que via ao seu redor eram a ausência de vida e as ocasionais criaturas como ele. E Alonzo achou aquilo bom, muito bom.

Não tardou para que ele descobrisse que viver ali era como estar na chuva: mas ao invés de estar constantemente hidratado, se sentia nutrido. Era como se o ar dali carregava tudo o que ele precisava para saciar sua fome interminável, mas no fundo ele sabia que precisava de mais. E ele continuava caçando seus irmãos menores, e atacando da maneira que conseguia. Mas ele notou que por mais desolado que fosse o cenário, algumas criaturas se agrupavam em bandos. Algumas inteligentes como outras, e outras com características mais animalescas, que se submetiam a um mais forte por proteção.

Com Alonzo não foi diferente. Ele formou um quarteto com outras criaturas semelhantes. Não eram amigos, eram apenas aliados ocasionais. Não haviam retido uma porção grande de inteligência como ele, mas sabiam se virar. Haviam sobrevivido por tempo suficiente no Hueco Mundo para serem dignos de alguma atenção. E após aquela junção, a caça apenas aumentava. Realizavam até mesmo pequenas incursões em território humano, quando sentiam a prazerosa pressão espiritual oriunda do desastre.

No fundo, Alonzo sabia que era apenas uma questão de tempo até que o grupo se fragmentasse e a fome de alguém falasse mais alto. E desde o momento em que havia formado aquele bando, já pensava em como trairia cada um deles.


Não demorou muito tempo para que Alonzo descobrisse que seu pequeno grupo estava sendo seguido. E a figura era bem estranha na visão dele: tinha formatos humanos demais para ser alguma outra criatura semelhante a ele, e exalava uma pressão tão poderosa que ele sempre tomava cuidado para ficar as margens de sua própria percepção, temendo que pudesse ser fulminado a qualquer momento. De uma forma ou de outra, a criatura parecia passiva em relação ao grupo, e quando ele notou que ela parecia estar forçando o grupo a seguir determinada rota pela paisagem desolada do deserto, foi tarde demais.

Diante deles, no meio da areia sem vida e das pedras esbranquiçadas, estava uma coisa que ele já conhecia: um shinigami. Ele se lembrava das pessoas que usavam as vestes pretas, e também a facilidade com a qual eles haviam ceifado alguns de seus irmãos mais fracos quando Alonzo ainda estava preso no mundo dos homens. Será que aquela figura elusiva era outro deles? Será que estava tentando forçar uma luta? Ele não teve muito tempo para tentar raciocinar, no mínimo sinal de hostilidade da outra parte, um de seus aliados avançou em direção a ela. E embora a figura parecesse confusa quanto a sua localização, se demonstrou preparada.

O Hollow que tomou a iniciativa foi facilmente despachado. Alonzo deu um passo para trás, não estava com medo ou receoso, só queria ter certeza de que conseguiria coordenar os dois aliados que estavam ao seu lado. Eles estavam em superioridade numérica e há muito haviam se afastado dos padrões de força comum de um simples Hollow. Se ele conseguisse ser esperto o suficiente, aquela luta poderia ser bem mais rápida do que ele esperava. No final das contas, não foi. Duraram longos minutos e entre mordidas, facas e mais luta corporal do que o necessário, os Hollows conseguiram sobrepujar o inimigo. O próprio Alonzo estava ferido, assim como seu último aliado remanescente, mas estava vivo. Vitorioso, ele estraçalhou o corpo da shinigami sem nenhuma clemência, absorvendo aquela alma ancestral como se fosse um doce maturado.

Ele se curava rápido, sabia disso, mas não iria deixar sua guarda baixa. Talvez o mesmo pensamento estivesse passando pela mente da outra criatura. E após um breve conflito, ele também se alimentou daquele outro Hollow, concluindo o propósito daquele grupo e sua traição que já havia sido premeditada. E enquanto estava se banqueteando, algo em seu âmago começou a se manifestar. A figura estava mais próxima do que antes e por um segundo ele temeu estar perto da morte. Ele ergueu uma das mãos, preparado para atacar e ao resvalar na máscara, notou que ela estava estranhamente móvel. O corpo de Alonzo começou a descascar após ele remover o objeto e sua forma atrofiou até ele retornar aos seus contornos humanos. Kana estendeu a mão para ele, como se já estivesse esperando aquele resultado. Ele aceitou o gesto sem saber que aquilo era bem mais simbólico do que ele esperava.


Todo o processo de amadurecimento e fortalecimento de Alonzo levou décadas, quase um século. Mas ele finalmente conseguiu força suficiente para remover sua máscara de forma natural e retornou novamente a uma forma mais humanoide. Agora, com poder superior ao que ele possuía e ainda aprendendo quais as limitações de seu novo corpo, sua mente á trabalha com um objeto em mente, que em muito se parece com seus ideais humanos: transformar aquela terra inóspita em algo melhor.