Já tinham uns dias que Kina não retornava para o prédio do esquadrão, por mais que os riscos que havia passado tivessem lhe garantido a coroa dentro da Quinta Divisão na infame Guerra do Sushi, os danos internos em seu estômago foram o suficiente para lhe fazer descansar no hospital por uma semana. Foi a pior semana de sono da sua pós-vida, todas as noite Kina acordava com algum barulho estranho que parecia vir do porão da Quarta Divisão.

A mulher imaginava que tendo se saído tão bem na competição talvez ganhasse o respeito ou algo similar de seus colegas, mas os olhares alguns frios e distantes e outros amedrontados só pareciam ter piorado.

— Aaah… — Kina suspirava em desânimo, mas não tinha muito o que fazer quanto a isso, por mais que durante as noites em claro ela tivesse ensaiado a interagir mais adequadamente ou a fazer um aperto de mão sem quebrar ossos, não seria dessa vez que tal treinamento seria usado.

— Bom dia Capitão Go… — Como de costume, ao abrir a porta da sala seus superiores estavam ausentes — E eu ainda me dei ao trabalho dizer seu nome correto dessa vez… — Então era isso, nenhuma recepção calorosa ou felicitações por ter se recuperado, Kina já estava de volta ao seu dia-a-dia.

— Ah! Bom bom dia Oficial K-kina — Quem lhe cumprimentava era um shinigami baixo, de cabelo curtinho e escuro, sua face cheia de olheiras de tanto trabalho e o kimono meio desorganizado, como se ele tivesse passado a noite toda trabalhando. Kina se lembrava vagamente de sua imagem, por ser bem fraco em combate, ele geralmente pegava todo o trabalho administrativo do esquadrão, e por muitas vezes era ordenado pelo Capitão para cuidar de sua papelada.

— … — Kina quis cumprimentá-lo mas não lembrava seu nome, e por isso ficou parada observando o shinigami desajeitado derrubando seus papéis pelo corredor — Você viu o Capitão? Err… Yamashiro?

— Yamazuki, meu nome é Yamazuki! — Por um instante o rapaz se esquecia com quem estava falando e corrigia seu nome irritado, apenas para pular de susto depois com sua realização, Kina por outro lado não esboçava reação alguma, ela que estava errada ao final de contas.

— Entendo…

— Ah, sinto muito! Quero dizer, err… O Capitão não está, mas ele me deixou com uma carta para a senhora, devo lê-la? — Kina afirmou com a cabeça, aguardando o recado do Capitão Gorou — Então vou ler, hrrm hrrrmm… “Heh! Aposto que entrou na minha sala me xingando como de costume e ficou tristinha quando não me viu. Estou ocupado fazendo coisas de capitão, então essa carta vai ter que servir. Primeiramente parabéns pela sua recuperação e parabéns por não ter matado ninguém dentro do hospital, como celebração pelo seu retorno, estou à mandando embora. Preciso de alguns cães patrulhando nossa jurisdição lá no mundo humano, o Oficial Yamazuki vai te passar os detalhes. Ps: Leve o novato com você, os dois são esquisitos então devem se dar bem.” É isso…

O rapaz lia carta com uma voz relaxada e condescendente ao mesmo tempo, combinava bem com o Capitão Goro, por mais que suas pernas estivessem tremendo pelo o que poderia acontecer com ele caso irritasse a mulher de cachos prateados. Kina por outro lado estava feliz com o recado recebido, era o que ela esperava de seu superior.

— Novato? — Perguntou tentando imaginar à quem a carta se referiu.

— Sim, o Oficial Utagawa Hyuse, ele chegou da academia na semana que a senhora estava se recuperando, por isso não o conhece, ele é… difícil de lidar.

— Entendo… — Pra Kina aquela era uma situação estranha, estava acostumada a fazer suas patrulhas sozinha, e não fazia ideia de como poderia orientar alguém novo na divisão, imaginou que fosse uma punição de seu superior pelas coisas que ela tinha dito no outro dia — E os detalhes da patrulha?

— Certo certo… é na cidade de Busan na Coréia do Sul, o período é de uma semana — Enquanto terminava de explicar, o rapaz apanhava os documentos que havia derrubado no chão, Kina o ajudou a pegar alguns deles antes que ele percebesse, e era evidente sua surpresa e também hesitação em pegar os papéis da mulher, o que a deixava um pouco triste, embora sua expressão não mudasse nem um pouco.

— Me faça o favor de encontrar esse Hyuse, diga que estarei esperando no dojô da quinta — Passando direto pelo Oficial Yamazuki, que se curvava para a superior de saída, Kina andou mais um pouco pelos pisos de madeira do “quartel” até chegar no dojô.

O lugar era espaçoso, com um piso de madeira brilhante e um Kanji escrito “Trabalho Duro” escrito na parede, era irônico para Kina pensar em seu capitão mandando pendurar aquilo, uma cena que sempre trazia um sorriso discreto para o seu rosto. Alguns oficiais já estava treinando lá dentro, mas a chegada de Kina deixava todos desconfortáveis ao ponto de pausarem suas práticas, como sempre ela fingiu não se importar, andou um pouco pelo ambiente até se sentar ajoelhada de frente para a entrada, seus olhos permaneciam fechados até que Hyuse chegasse.

Por alguns instantes Kina ficava tanto aliviada quanto decepcionada em ver o Oficial Yamazuki entrando no dojo sozinho, ela imaginou que ele não havia conseguido encontrar o novato ou que o mesmo simplesmente não quis aparecer. No pior dos casos seu plano era simplesmente seguir sozinha, mas como uma peça do destino, não era para Kina que o oficial se dirigia, e sim para um outro shinigami que treinava sozinho.

O fato de que os dois estavam no mesmo dojo sem se conhecerem tornava aquela situação meio constrangedora, se Kina tivesse se dado ao trabalho de ver a foto de Hyuse nos registros da divisão algo assim não teria acontecido, e por isso a mulher ficava um pouco envergonhada consigo mesma.

— Hyuse-san! Espera Hyuse-san, é melhor tomar cuidado como fala com ela… — De longe era possível escutar os dois conversando, o tal Hyuse começa a se aproximar, enquanto o Oficial Yamazaki cochichava, numa tentativa fútil de manter sigilo, alguns conselhos de como não a aborrecer, claro que a maioria era baseado em rumores infundados e nem faziam sentido. Quando Kina abriu os olhos e mirou em sua direção, Yamazaki se calou.

— Terceira oficial da Quinta Divisão Kina Lillet, sou eu mesma — respondeu ao homem enquanto se levantava, deixando seus olhos na mesma altura, já estava tão acostumada em fazer aquela apresentação automática que acabou dizendo seu nome novamente por mais que o homem já soubesse. A quebra de protocolo em suas interações usuais fez Kina parar em um silêncio constrangedor enquanto pensava como deveria prosseguir, externamente, ela e Hyuse se encaravam com caras sérias, para os espectadores do dojô, parecia que as coisas saíram de controle a qualquer instante.

— Hmm… Você… O Capitão me pediu para levá-lo ao mundo humano comigo. Os detalhes não interessam agora, antes disso tem um problema…

Kina virou-se de costas para Hyuse, andando até os instrumentos na parede e trocando sua própria Zampakutou por uma espada de treino.

— Acontece que eu sou muito boa em matar coisas… — enquanto falava, Kina balança a Shinai testando seu peso e depois aferiu o alinhamento colocando-a perto do rosto — Porém sou péssima em proteger…

A shinigami então jogou a espada de madeira para Hyuse, apanhando uma outra para uso próprio logo em seguida, segurando-a com uma mão e descansando a "lâmina" em seu ombro.

— Por isso preciso saber se dá conta por si só. Me ataque como quiser, você tem dez minutos para provar seu valor — Embora sua postura fosse relaxada e parecesse cheia de falhas, a pressão espiritual que a mulher emitia era o suficiente para cobrir qualquer brecha.

*Crack! Crack!

As madeiras do chão do dojo estalavam com o confronto da energia dos dois antes mesmo que começassem. Uma plateia se formava do lado de fora, querendo observar a luta entre o novato arrogante e aquela que eventualmente passou a ser chamada de "homemcida" pelo esquadrão.

Os segundos antes do ataque eram de mais puro silêncio, mas logo Hyuse investia contra a mulher que focava-se apenas em defender, a técnica de Kina era simples, envolver todo seu corpo em Reiatsu para servir tanto de  escudo como de lança, normalmente manter-se 100% do tempo nesse estado de pressão focalizada é muito desgastante e pouco efetivo numa luta de verdade, mas para dez minutos de um treino era mais do que o suficiente.

No primeiro golpe Kina ficou parada, utilizando o máximo de sua pressão espiritual de forma que quando acertada Hyuse não só era incapaz de empurrá-la como também era forçado para trás.

— Entendo… — Disse enquanto, assim como o outro shinigami, jogava sua espada fora, aquela parecia que seria uma luta de punhos.

Com base no primeiro golpe, Kina abaixava um pouco o nível de sua reiatsu para que se igualasse a força de Hyuse, sua postura agora era como a de uma boxeadora, esperando os ataques do homem protegendo a cabeça com os punhos.

Em nenhum momento Kina atacava, apenas focou em defender-se enquanto avaliava o novato, quando era pressionada o bastante, se afastava movendo-se rapidamente com shunpo para outra região do dojo. Sua lógica é que se o homem tivesse uma ofensiva forte o bastante ele nunca precisaria se defender para começo de conversa.

Enquanto analisava as habilidades do rapaz, Kina pôde observar que em questões de velocidade e força os dois não eram muito diferentes, suas melhores qualidade pareciam ser mais o controle do corpo e técnicas de luta corporal, ali no corpo a corpo, Kina sentia que mesmo se não fosse sua intenção ficar na defensiva, se estivesse lutando a sério só com as mãos nuas ela provavelmente seria obrigada àquela mesma posição.

Pela primeira vez a mulher fazia uma ação ofensiva, concentrando sua reiatsu na palma da mão ela liberou tudo na direção de Hyuse empurrando-o alguns metros para que pudesse respirar. Sete minutos haviam se passado, e Kina já começava a sentir os efeitos de sua reiatsu sendo drenada, mas Hyuse ainda não havia lhe mostrado o suficiente para impressioná-la.

— Suas habilidades são o bastante para passar na academia… Mas se quiser me acompanhar lá fora precisa me mostrar algo a mais.

O fato de Hyuse já estar acima da média só tornava a mulher ainda mais exigente, afinal de contas era de sua preferência apenas ir sozinha na missão, e não se importava de pegar pesado com um novato para conseguir seus desejos.

A próxima e última sequência do homem a pegava de surpresa, não só seus golpes estavam mais refinados como também sua velocidade superou a de Kina naquele instante. Ela mais uma vez colocou sua guarda, mas os golpes que recebia, principalmente no estômago e costelas começaram pouco a pouco a penetrar sua defesa de pressão espiritual, aos poucos os danos foram se acumulando e a dor aumentando.

Ou Hyuse estava escondendo sua força até então ou ele havia evoluído no meio do combate, em qualquer uma das duas possibilidades aquilo era surpreendente. Pela primeira vez em sua carreira de shinigami Kina abriu um sorriso bem aberto mostrando todos os dentes, sua expressão "maníaca" mandava um frio na espinha de todos que assistiam e a temiam de fora do dojo. A mulher apesar de pressionada estava começando a se empolgar, aquele tipo de luta mais brutal, sem espadas, sem forma marcial, lhe trazia de imediato as memórias do 79° distrito, quando tinha que lutar pela sua vida diariamente.

Se deixando levar pelo calor do momento, Kina acabava parando de se conter e liberava sua especialidade: Kidou.

— Bakudou N. 8: Seki — primeiro uma pequena bolha translúcida aparecia entre o punho de Kina e Hyuse, quando tocada pelo homem, ela estourava empurrando-o de volta. Não havia tempo de se recuperar, quando Hyuse percebeu, a outra mão de Kina já brilhava em uma coloração amarela.

— Bakudou N. 30 Shitotsu Sansen — De suas mãos o brilho se tornou três garras de luz, que lançadas contra o homem, o arrastaram até a parede do local o prendendo lá. Mais uma vez a mão de Kina brilhava, dessa vez azul, era o golpe final.

— Hadou N. 33 Soukats… Ah! — Mas antes que terminasse o ataque Kina fechava sua mão, explodindo o ataque na própria palma. O motivo para que a mulher se conteve não era preocupação em machucar Hyuse ou os espectadores atrás da parede, apenas se lembrou que da última vez que destruiu a sala de treino o Capitão a fez pagar pelo concerto, e isso era algo que ela definitivamente não queria fazer de novo.

— Vamos parar por aqui — Anunciava a mulher enquanto se aproximava de Hyuse liberando o Kidou que o pregava na parede — Você… se saiu bem… talvez eu tenha exagerado no final, me desculpo por isso.

Andando então em direção a saída, Kina parou na porta falando alto para todos que rodeavam o dojô ouvissem.

— O show acabou, voltem ao trabalho seus cães! — Tentou imitar as palavras que o Capitão Goro diria naquele momento — E você… digo, Hyuse. Me encontre na frente do quartel quando estiver pronto, vamos passar na 12ª divisão antes de irmos para o mundo humano.

— Você tem razão, sinto muito… — Kina fechava os olhos pensativa com indagação de Hyuse, mas para a shinigami levar uma luta a sério e ir com tudo apenas acabaria em um dos dois mortos, algo que não seria bom acontecer, por outro lado, parecia ter ofendido o homem ao não atacá-lo com seriedade — Minhas habilidades não são adequadas para treino…


Sentindo o corte em sua bochecha, Kina passou o dedão recolhendo o pouco de sangue que havia escorrido e levou até os lábios limpando aquele líquido de gosto metálico da mão. A moça sorria um pouco, estava satisfeita com os resultados que Hyuse havia demonstrado, não só isso mas também achava agradável a forma como ele a tratava de forma casual e sem medo algum.


— Ainda assim, certifique-se de usar a espada para finalizar ou então as almas dos Hollows não serão purificadas.


Quando notou o buraco na parede, Kina olhou para os dois lados se certificando que todos os espectadores já haviam ido embora, e então moveu a placa com o kanji  “trabalho duro” de forma que o buraco era coberto pelo lado de dentro. O Oficial Yamazuki que ainda estava por perto observando acabava vendo a tentativa de Kina de escapar da responsabilidade. Ao notar o shinigami a mulher cobriu a própria boca com o indicador, Yamazuki entendeu corretamente aquilo como uma ameaça para que ficasse em silêncio, e assim ele balançou fortemente a cabeça positivamente antes de ir embora às pressas.


Hyuse também já havia partido, só o que restava a Kina era terminar as preparações para a missão. Apanhando sua zanpakutou que até então estava apoiada na parece, ela seguiu sem pressa até a sala do Capitão Goro, só enquanto andava que a mulher percebeu o quando havia se esforçado naquela luta, tendo gasto até mais reiatsu do que normalmente possuía, colocou a mão por tempo nas costelas que doíam um pouco.


A passagem na sala de seu superior era breve, buscava apenas pela papelada de solicitação de material, felizmente embora seu Capitão fosse preguiçoso, a mesa de Goro era surpreendentemente organizada e fácil de encontrar os documentos necessários, provavelmente pelo fato de ele raramente trabalhar nela.


Como combinado os dois Shinigamis se encontram na frente do laboratório da 12ª divisão, Kina não possui o costume de falar muito, por isso apenas cumprimentava com a cabeça antes de seguir para dentro do prédio. Quem os recepcionava era uma mulher baixinha, de óculos redondos e jaleco braco.


— O-olá! — Disse aos dois que entravam no lugar. Mais uma vez Kina não respondeu verbalmente, apenas encarou a garota em silêncio por alguns segundos antes de lhe entregar os papéis que haviam preenchido.


— Estamos de saída, preciso do que tem aí — O documento listava dois Gigais e dois Gikongans.


— Claro… — A shinigami de jaleco levava os papéis para os fundos, de onde não muito tempo depois vinha um homem furioso.


— Kina sua maldita! Como você ousa voltar aqui depois de ter matado quatro Gigais? — Ele também trajava um jaleco branco, seu rosto era o de noites em claro, não possuía cabelo e tinha uma barba castanha.


— Ilógico… eu só posso matar o que já tem vida — Era o que Kina respondia sem dar muita bola.


— Sua monstra insensível! Sabe o trabalho que é para criar um corpo artificial com tantos detalhes?


— Sinto muito…


— De qualquer forma, como você consegue destruir algo com a sua exata aparência. Hã? Como é que é? Isso foi um pedido de desculpas? Fale mais alto.


— Sinto muito que suas criações sejam tão fracas. Não desperdice o meu tempo — Kina ficava visivelmente irritada pelo homem desagradável, o que o fazia tropeçar um pouco nas palavras.


— Ah… certo, vocês podem apanhá-los na sala ao lado, por favor tenha cuidado dessa vez.


Sem dar resposta alguma, ela seguiu para o lugar indicado onde haviam duas bolsas pretas grandes.


— Você leva o seu… — Disse para Hyuse enquanto apoiava a bolsa, que não só parecia como também pesava como um corpo morto, em seu ombro — Vamos indo.


Ali mesmo, sem nem antes sair do laboratório, Kina puxou sua espada da bainha e como uma chave destravando uma porta no ar, o senkaimon era aberto. A borboleta infernal que a mulher trazia consigo tomava à frente, e assim os dois finalmente podiam seguir para o mundo humano.


A presença da Borboleta Infernal permitia que ambos transitassem entre os mundos tranquilamente e sem o risco de ficarem presos ou serem jogados até um tempo distante. Enquanto caminhavam, Kina finalmente explicava a missão.


— Estamos indo para uma cidade na Coréia. O tempo de patrulha é de mais ou menos uma semana. Eu geralmente cubro essa área sozinha então não tem motivos para nos separarmos, você pode lidar com todos sem a minha ajuda se for de seu agrado.


Quando saíam do portal, em uma das ruas vazias da cidade, um único poste de luz com a lâmpada falhando periodicamente era o que os iluminava, já era tarde da noite, algo por volta das três da manhã. 


— Não deixe seu Gigai largado, a polícia pode confundir com um cadáver — Abrindo a bolsa preta, o que ambos encontravam dentro era uma réplica de seus próprios corpos, entretanto feitos de carne e osso e vestindo roupas comuns como os humanos. Acompanhado a isso vinha uma pequena esfera que quando inserida na boca do Gigai animava-o por conta própria, era uma alma artificial.


— Procure algum lugar tranquilo, nós voltamos logo — Disse para sua substituta enquanto esperava Hyuse se aprontar.

— Gigais não tem alma por isso não possuem emoções… Quando ganham uma alma artificial eles até mesmo demonstram personalidade — Kina explicava para Hyuse demorando mais do que o comum para entender a comparação que ele havia feito.

— Eu aprendi a suprimir as emoções, foi a única forma de virar Shinigami… Você me dizer isso indica que meu controle ainda é fraco — Disse a mulher enquanto mantinha o mesmo tom de voz e um rosto sem expressão.

Aquela era uma situação estranha para Kina, não estava acostumada a conversar por tanto tempo assim com alguém que recém havia conhecido, e muito menos alguém tão sem papas na língua tal qual o Capitão Goro. Por alguns instantes a shinigami ficou observando as próprias mãos, contemplando o que Hyuse queria dizer com “gastar suas mãos macias”.

A chegada no mundo humano era tumultuada como esperado, Kina esperava sentava em cima de um muro baixo enquanto observava Hyuse lutar com os Hollows, o rapaz havia se provado durante o treino de forma que ela não se incomodava ao ponto de ajudar com aqueles peixes pequenos, era melhor deixar o novato se ajustar com o combate no mundo humano.

Quando Hyuse se aproximou perguntando se era só aquilo, Kina desceu novamente até a rua, andando até a zampakutou arremessada e a apanhando para o homem.

— Não sinto mais nenhum Hollows na área, não é comum aparecerem mais do que já vimos pela noite — Kina oferecia de volta a katana do outro oficial enquanto respondia sua pergunta — Se surgirem mais a Central vai no avisar, enquanto isso existem outros trabalhos que os Shinigamis fazem neste mundo.

Vindo de um beco ao lado, ambos os ceifadores podiam ouvir um miado fino do gato de antes, agora que os espíritos malignos haviam sido purificados o animal estava muito mais dócil, ele andou até os shinigamis se esfregando brevemente nas pernas tanto de Kina quanto de Hyuse e então retornou para o beco.

Kina ergueu a mão de costas para Hyuse, puxando o indicador duas vezes, sinalizando para que ele a seguisse. Ela foi na direção que o gato parecia chamar, e lá estava a alma de uma garotinha escondida atrás de algumas caixas. Sua figura brilhava um pouco, com roupas brancas e uma pequena corrente cortada ligada ao seu peito.

— Você a estava protegendo… — Disse a Shinigami para o gato, que miava em resposta. Aquilo deixava Kina num estado de grande reflexão, como pode uma criatura como aquela movida apenas pelo instinto se arriscar protegendo uma alma dos monstros? Quando a maioria dos seres sentientes apenas se preocupam consigo mesmos, mesmo Kina, só fazia aquilo pois era seu trabalho…

— Quem… Quem são vocês? — Perguntou o espírito da garotinha que não aparentava ter mais de dez anos de idade, ela tremia um pouco com medo. Antes de responder Kina olhava Hyuse por um instante, queria ter certeza de que ele estava observando aquela parte do trabalho.

— Não tema, viemos te ajudar a encontrar um lugar mais seguro — Aquela era uma fala padrão que constava nos manuais de Shinigami, mas Kina odiava dizer aquilo, a depender do distrito que aquela pobre alma fosse mandada, seu sofrimento podia ser até pior do que permanecer na terra, e Kina sabia bem disso na pele.

Apaziguada pela voz calma da Shinigami, a garotinha saiu de trás das caixas já mais tranquilo, e coberta de curiosidade com relação à aqueles dois seres em sua frente.

— Vocês são anjos? — Aquela pergunta fazia a mulher hesitar por alguns instantes, não era a primeira vez que alguém a chamava assim.

— Você nos conhece por muitos nomes, mas o que interessa é que viemos lhe ajudar a passar para o outro lado. Você sabe o que aconteceu com você, certo?

— Uhum… — A garota afirmava cabisbaixa o conhecimento da própria morte — Eu fui atropelada por um carro enquanto salvava o gatinho… mas não doeu, eu só acordei ali na calçada, e então uns monstros estranhos começaram a aparecer.

Enquanto a menina contava sua história, ela se agachava tentando acariciar o gato, infelizmente os dois eram de planos diferentes e não conseguiam fazer contato físico, era tudo apenas nas aparências. Kina observou aqueles dois agora entendendo a atitude do gato, ele estava pagando uma dívida, mas agora já não compreendia como a garota poderia ter se arriscado tanto por um simples animal.

— É hora de ir — a Shinigami dizia num tom frio.

— Esse lugar pra onde eu vou… como é lá?

— Você vai ganhar uma família nova, lá você não sente fome nem sede, e pode fazer o que quiser enquanto espera para sua próxima reencarnação.

A garota parou por uns instantes, olhando para o gato de rua que era um pouco magricela de fome.

— Não podemos ir juntos? — Kina apenas acenou negativamente com a cabeça, aquela ainda não era a hora do gato — Então pelo menos… será que vocês poderiam alimentá-lo pelo menos uma vez?

Aquele era um pedido que pegava Kina de surpresa, por muitas vezes ela já havia lidado com humanos tentando barganhar pela própria vida, mas era a primeira vez que ouvia um pedido altruísta como aquele. Aquilo era algo que a mulher de cachos de prata ainda não compreendia bem, mas mesmo sem saber o porquê estava fazendo aquilo, Kina aceitou.

— Muito bem, farei isso após enviá-la.

A garotinha agradeceu muito, e após deixar ela e o gato se despedirem, Kina desembainhou sua espada, utilizando o pomo da katana para tocar gentilmente na testa da garota, que em um feixe de luz começou a desaparecer até que era enviada totalmente para a Soul Society.

Kina soltou o ar num suspiro de exaustão, ela preferia lutar contra cem Hollows do que enviar almas como aquela menina, os humanos ainda a confundiam muito, e Kina ainda estava no processo de entendê-los e entender a si mesma.

*Meow…purrr

O gato mais uma vez se esfregava entre suas pernas, Kina agora tinha uma promessa a cumprir.

Com a espada em sua garganta a mulher ficava imóvel por alguns instantes, não pela lâmina apontada para si mas escutando as palavras de Hyuse, sua indignação não era infundada, mas as palavras de Kina também não eram mentiras. Para a shinigami não foi difícil discernir que uma alma com pouca energia espiritual como a da garotinha realmente não precisaria se alimentar ou ter sede, e o fato dos dois ali terem uma vida difícil se dava principalmente à raridade de suas altas densidades espirituais.

Mesmo a shinigami de cabelos brancos ainda não sabia bem o que era uma vida digna, estava tentando formar uma, e por isso gostava de observar o comportamento principalmente dos humanos. Era fato que alguém enviado para os distritos mais distantes da Seireitei poderia enfrentar dificuldades, mas esse pode não ser o caso, e na mentalidade da mulher não fazia sentido falar sobre algo que talvez aconteça. Independente disto, não havia destino pior do que permanecer na terra e se tornar ou ser devorado por um Hollow, perder sua consciência… comparado a isso, mesmo o octogésimo distrito era o melhor pior final.

— Se esse for o caso então… acredito que serei odiada por mais um — Kina redirecionava a lâmina com o indicador para longe de sua jugular antes de andar para fora do beco. Seu rosto manteve-se neutro como se não a importasse, mas esse não era o caso, aquela era apenas sua expressão usual, por mais que estivesse um pouco aflita e incerta com aquele assunto era incapaz de demonstrar.

Ambos os shinigamis retornavam para os seus Gigais antes de seguir pela cidade, o Sol já havia nascido e aos poucos os habitantes começavam a acordar, Kina e Hyuse esperavam até o horário comercial antes de começar a procurar por uma pet shop. Era por volta das oito da manhã quando a mulher saía da loja com um sachê sabor atum juntamente com um pote de plástico, o dinheiro utilizado era o disponibilizado para a estadia de uma semana no mundo humano, mas ela não se incomodava de ceder sua refeição de um ou dois dias por aquilo.

Kina não alimentava o gato ali na mesma hora, ao invés disso guiava Hyuse e o felino por mais alguns blocos até que parava na frente de um café local, onde sentava-se em uma das mesas externas, rasgando o pacote de ração e colocando no pote próximo aos pés da mesa.

— Unnie! — Dizia a garçonete do local direcionada à Kina, aquela era uma forma de se referir à uma mulher mais velha no país em que estavam — Já faz um tempo que não vêm aqui, veio a trabalho de novo?

— Bem… algo do tipo.

— O mesmo de sempre?

— Traga-me dois — Com um dos pés Kina afastava a cadeira em sua frente abrindo espaço para alguém se sentar, ela não dizia nada e muito menos olhava para Hyuse, mas sua pequena ação era como um convite para que ele se juntasse. A garçonete olhava para os dois com um sorrisinho e fazia um comentário brincalhão antes de voltar para dentro com a ordem.

— Fico feliz que a Kina-ssi tenha vindo com o namorado dessa vez, seja muito bem-vindo, hihihihi.

— Hmpf… Bobagem — Aquele tipo de provocação não era algo que afetava sua expressão padrão, como esperado, porém ainda era perceptível uma sutil mudança para um humor mais positivo enquanto Kina conversava com a atendente.

Era costume da Shinigami sempre que ficasse por mais de um dia no mundo humano visitar um café ou algum lugar com uma certa concentração de humanos. Era interessante observá-los, mas o que Kina mais gostava era como todos lhe tratavam como uma pessoa comum, sem olhares cruzados de raiva ou medo, em sua maior parte, apenas gentileza.

Não demorou muito para o pedido chegar, eram duas canecas grandes de café e uns pãezinhos doces, algo que grande parte dos habitantes da Soul Society nunca provaram em suas vidas.

— Ter uma vida digna é poder dar aos outros esperança… — Depois de um longo período de silêncio, Kina após terminar seu café, dizia isso respondendo o comentário anterior de Hyuse — Foi o que eu ouvi antes de deixar o septuagésimo nono distrito.

Ela observava o fluxo de pessoas na calçada, estando virada de perfil para o homem, observando-o momentaneamente pelo canto do olho.

— Isso é algo que os humanos nascidos neste mundo fazem muito bem, por mais que estejam neste mundo caótico eles seguem em frente. Não havia motivo para jogar aquela garota em desespero, contanto que não desista ela pode controlar seu destino e nós não podemos fazer nada para mudar isso. Lembre-se que não somos juízes, apenas executores.

Kina se levantava da mesa em direção ao interior do café para pagar a conta, apenas concluindo seu pensamento antes de ir:

— Se não estiver satisfeito com isso então vá ver o Rei das Almas e reclame com ele, dê-lhe uma bela surra… É o que eu faria.

— Pfff… ahaha… — Aquele era um evento que muitos da Quinta divisão diziam só presenciar uma vez a cada dez ano, mas Kina por um breve momento deixava cair sua máscara de apatia e sorria abertamente com a resposta audaciosa de Hyuse. Talvez fosse por se sentir mais à vontade com alguém de um passado parecido, mas a Shinigami naquele momento agia bem mais como sua personalidade antiga e verdadeira.

— Certo… só não comente isso na Soul Society, eles podem te suspender — A mulher fechou os olhos e tapou a boca com uma das mãos brevemente, respirando fundo e recuperando sua compostura usual. Enquanto isso Hyuse se desculpava, e aquilo realmente a surpreendeu, principalmente por ela nunca ter tomado nenhuma de suas palavras como ofensa em primeiro lugar.

Kina pensou em mencionar como foi apresentada à esses lugares pelo Capitão Goro assim que entrou no Quinto Esquadrão, em sua maior parte porque seu superior estava fugindo do trabalho, mas isso foi algo que ajudou Kina a mudar um pouco sua perspectiva do mundo, e ela imaginou que poderia fazer algo similar por Hyuse que parecia ter vindo de um passado tão ruim quanto o dela. Mas nada disso foi dito, como poderia? Afinal de contas, Kina ainda seguia escondendo suas verdadeiras emoções e intenções de tudo e todos.

— Entendo… vamos continuar a patrulha — Era o que saía de seus lábios no lugar.

Apesar da estranheza inicial, com o tempo a semana foi se passando e os dois shinigamis foram se acostumando um pouco melhor um com o outro. A patrulha em si foi tranquila como a maioria delas são, nenhum inimigo necessariamente perigoso havia surgido e algumas almas vagantes foram mandadas para a Soul Society neste meio tempo. Durante à noite, Kina pulava sua refeição para que pudesse comprar ração pro gato ao menos pelo período que ficava ali.

Eventualmente a missão chegava ao seu último dia. Kina e Hyuse se reuniram no mesmo beco que haviam chegado pela primeira vez, o gatinho preto também estava presente para se despedir, mesmo que os dois estivessem indo embora, animais de rua são espertos, ele ficaria bem.

O Senkaimon se abria involuntariamente e de dentro saíam outros dois Shinigamis que substituiriam a dupla atual. Kina olhou para eles com um olhar frio, como se fossem estranhos apesar de serem todos da mesma divisão.

— Vocês dois… Alimentem aquele gato enquanto estiverem aqui e passem as ordens ao próximo turno… Ou cortarei suas cabeças — Aquilo descia um certo frio na espinha dos outros dois enquanto Kina passava por eles entrando primeiro no portal de volta a Soul Society.

— Cer… Sim senhora!

Após a entrada da mulher, um dos shinigamis soltava a respiração, fazendo um breve comentário com Hyuse que ainda não havia entrado.

— Pheeew… Nossa deve ter sido duro passar uma semana com essa maluca, geralmente ela vem sozinha, não sei o que deu no Capitão.

Não muito tempo depois Kina e Hyuse botaram os pés de volta na Seireitei, aquela havia sido uma missão bem diferente para a shinigami, fazia muito tempo que não patrulhava com alguém, mas ela ao menos não tinha odiado essa vez… e ninguém perdeu nenhum membro…

— Eu tenho que escrever o relatório… Você entrega os Gigais? — Fez o pedido já se sentindo um pouco mais confortável com Hyuse que havia executado um ótimo trabalho até o momento.

— Tenha um bom descanso então, até a próxima.