Retomo à consciência completa de forma súbita, ao sentir a frieza de um calafrio que subiu pela espinha até alcançar a nuca. Estou longe de me considerar uma pessoa supersticiosa, mas algo aconteceu, e eu instintivamente me preocupo com a saúde de Yuichi, que está distante em uma missão. Inevitavelmente me pergunto o motivo de tantas falsas memórias bombardearem minha mente, como a imagem de nós dois juntos, não uniformizados, se divertindo e vivendo uma vida digna. Droga. ”Você não pode morrer...” — Essas eram as palavras que repetiam incessantemente em minha cabeça, quase como um mantra, ou uma súplica desesperada, lançada a qualquer força maior capaz de ouvir.

A mim nada cabia senão a administração da divisão em sua ausência, que eu esperava que fosse a mais curta possível. Esse sentimento ruim que preenchia o âmago era desesperador, principalmente por não ter controle nenhum sobre nenhuma variável dessa equação. Em dado momento eu percebi que pensar estava envenenando meu corpo, e me impedindo de fazer a única missão que Yuichi me deixou: Manter a divisão. Segundos antes de todo o alarde que aconteceu unicamente dentro da minha mente, a oficial Himari me trouxera um relatório urgente, com uma tarefa que, dentre todos os presentes na divisão, eu era a mais adequada a cumprir. Ela mantinha-se estática frente a minha posição, fitando-me com pupilas arregaladas, ansiosa por algum tipo de reação.

— Não se preocupe comigo, Oficial. Enquanto eu estiver fora, mantenha a divisão organizada e funcional. Não podemos decepcionar nosso Capitão.

Eu tenho minhas próprias ambições, que divergem completamente daquilo que é prioridade para um tenente da sétima divisão. Por não ter a influência necessária, tudo o que almejo deve ser tratado como secundário, e devo cumprir imediatamente aquilo que se é esperado de mim, algo que faço com orgulho, sabendo que acarretará no meu bem estar social, e na satisfação do meu capitão. Consigo entender que estou trilhando um caminho certeiro, porém lento, em direção ao que almejo, muito embora o maior obstáculo ainda esteja por vir.

Uma borboleta negra que pairava ao redor do meu corpo era a única coadjuvante que teria para aquela missão, e a criatura diminuta permaneceu comigo, mesmo após atravessar o Senkaimon que interligava a Seireitei com o mundo humano. Bastou-se um passo para que eu conseguisse sentir a leveza do ar rural, que carregava um aroma floral e doce, que arrebatou meus sentidos momentaneamente. Alguns cantos desse mundo são fascinantes, capazes de cativar até mesmo a alma de uma Ceifadora, no entanto, eu precisava me conter e não me deixar levar pelo romantismo.

Segundo o relatório de Himari, somente um pequeno vilarejo de humanos está situado em um raio de cinquenta quilômetros, com cerca de trinta pessoas, majoritariamente famílias de fazendeiros que cultivam arroz. Dada minha experiência, não é difícil de acreditar que todas essas pessoas tenham sido expostas à violência da criatura. — Argh... — Resmunguei, enquanto os braços eram erguidos e lançados para trás, flexionando a coluna. Até agora, tudo parecia simples demais.

Um trajeto direto foi tomado em direção ao vilarejo, e não mais do que cinco minutos foram necessários para conseguir avistar seu vislumbre no horizonte. Inicialmente, nada parecia se distanciar do ordinário, conseguia ver, inclusive, algumas poucas pessoas se reunindo no que parecia uma fonte, entre as duas maiores construções. Por não estar utilizando de um Gigai, aquelas pessoas não conseguiam notar minha presença, então me aproximei sem cautela alguma, absorvendo algumas das informações que sua conversa me oferecia.

Primeiramente, alguns adolescentes se reuniram com uma mulher robusta, que a julgar pelo tom de voz, deveria ser a representante daquele povo. Os mais novos pareciam preocupados com alguns desaparecimentos, e relatavam que ouviram gritos durante a noite. Considerando as informações que já detinha, aquilo provavelmente era uma pista que me levaria diretamente à localização do Hollow. A mulher, talvez não tão sábia quanto o seu posto a requeria ser, minimizava a situação e não parecia lidar com seriedade com o desaparecimento. Segundo os adolescentes, os três jovens desaparecidos teriam combinado de copular na plantação de arroz floresta adentro, e esse tornava-se meu novo objetivo.

Em passos largos, cruzei o perímetro do vilarejo em instantes, rapidamente adentrando a relva que cercava o local. Em algum lugar entre aquelas árvores encontraria o ser que deveria purificar, então a partir daqui, meus passos se tornaram muito mais cautelosos.

Entre as folhagens da farta relva, o brilho lunar encontrava meu corpo como um véu. Embora a mente mantinha-se levemente aérea, pensando no que poderia estar fazendo Yuichi nesse momento, os passos eram tanto precisos quanto diretos, seguindo o trajeto que havia adotado em direção a única pista que detinha sobre toda a situação. A ausência de remorso ou preocupação é uma das minhas principais características como uma Shinigami, por não ter apreço algum pelo dever de equilibrar a balança dos mundos, e são eles que me impedem de ter qualquer ligação com os três jovens desaparecidos.

Em determinado momento, meu caminhar foi interrompido ao ouvir um gemido acanhado. Me esgueirei por cima de um dos galhos mais altos, e sobre o chão avistei um corpo esguio e juvenil, com semblante espectral e pálido, com suas vestes despedaçadas e manchadas de sangue. Instantaneamente cheguei à conclusão que se tratava de um dos jovens desaparecidos, e não tardei em me atirar contra o chão, pousando próxima ao seu corpo, analisando precisamente a extensão de seus ferimentos.

Com ambas as mãos, tentei estancar os ferimentos possíveis para aumentar sua chance de sobrevivência, mas enquanto via o líquido carmesim fugir entre as brechas dos dedos, percebi que havia chegado tarde demais. A garota, que não parecia ter vivido o suficiente, tinha o brilho de seus olhos esvaído completamente diante da minha presença, vítima de uma atrocidade descabida. Por respeito às suas memórias, fechei ambos os seus olhos e coletei algumas folhas e arbustos dos arredores, deixando seu corpo em repouso até que eu conseguisse encontrar os dois outros jovens e o Hollow.

Agora, avancei de forma abrupta sobre o terreno arenoso, dispensando a camuflagem entre as folhagens ou a vantagem de terreno sobre os galhos mais altos. Meu anterior caminhar sereno era substituído completamente por uma investida assassina, unicamente distraída pela minha atenção ao cenário que me cercava, procurando qualquer traço que me levasse diretamente para quem eu deveria encontrar. Embora o foco, não conseguia conter as dúvidas em relação ao que exatamente havia acontecido com esses jovens, vide o caráter comportamental de um Hollow, que não costuma deixar para trás um humano ferido, que pode facilmente consumir.

Toda essa situação guiava meus pensamentos para vislumbrar os acontecimentos por um ponto de vista romântico, característico da forma como aprendi a ver o mundo. Na teoria que estimula meus ágeis movimentos, a garota teria sido salva por um gesto heróico de seus amantes, que sacrificaram suas vidas atraindo a atenção da assombração que a feriu, numa tentativa de contribuir com a fuga de sua amada, que apesar da tentativa, não conseguia obter sucesso por conta de seus ferimentos. ”Ah... Não esperava me deparar com uma história de amor tão trágica e tão tocante em um local tão simplório...” — Sim. Eu precisava saber o fim daquele conto inesperado, e para isso não poderia cessar meus passos.

Cada novo passo em direção ao meu objetivo final altera mais e mais a paisagem local. Dado a minha velocidade e a distância que aumentava drasticamente entre minha posição e o vilarejo humano, tudo me fazia crer que alcançaria a plantação de arroz a qualquer momento. Os grandes troncos das árvores de folhagem esverdeadas se tornavam mais escassos quanto mais avançava, e uma planície completamente aberta tornava-se um vislumbre num horizonte não tão distante. A luz solar refletida pela lua que circunda esse mundo banhava as plantações, criando uma paisagem rara e distinta, gerando a sensação de estar diante de uma tela que acabara de se preencher de cor.

”Esse é o cenário perfeito para a finalização de um romance.” — Essa era a linha de pensamentos que se formava, enquanto os olhos falhavam em detectar qualquer assinatura que levasse aos jovens desaparecidos ou ao Hollow. Aparentemente, eles haviam desaparecido completamente, sem deixar nenhum rastro para trás, o que começava a me fazer crer que o inimigo seja muito mais habilidoso do que o esperado, e minha falta de seriedade tenha dado a ele grande vantagem nessa perseguição.

Aproveitei a vasta planície, que concedia aos meus olhos a oportunidade de procurar pelos meus alvos mesmo distantes, mas não importa o quanto eu tentasse, não conseguia notar nenhuma pista que me ajudasse em minha investigação. Agora que alcancei a plantação de arroz, nem mesmo um trajeto eu tenho, e nada posso fazer senão aceitar a falha dessa tarefa. "Argh. Queria tanto terminar a história..." — Pensei, sentando-me entre a vasta meditação, abraçando os joelhos com ambos os braços. "Eu deveria ter prestado mais atenção nas pessoas do vilarejo, elas possivelmente possuem mais informações sobre tudo isso... Estava com tanta pressa para terminar essa tarefa trivial logo que acabei sendo ingênua." — Continuava a refletir, enquanto a imagem de Yuichi começava a se fazer presente entre os pensamentos. "Droga. Ele não vai ficar feliz quando souber que falhei nessa missão."

Conseguia sentir meu corpo se tornar cada vez mais quente, conforme minhas memórias e imaginação focavam-se na minha relação com meu Capitão. Nossa relação é invejável, mas o que ele faria ao descobrir que falhei em uma tarefa tão importante da nossa divisão? Essa e muitas outras dúvidas afligiam minha conturbada mente, porém não eram o suficiente para me deixar triste ou preocupada, pois apesar de tudo, eu estou diante de uma linda obra de artes.

A frieza subiu a espinha e tomou meu corpo por completo, enquanto a paisagem arrebatadora acariciava a visão e me distanciava de um péssimo sentimento que ascendia no âmago. Embora distante, conseguia distinguir aquela sensação ruim presa na garganta, que deixava um gosto pútrido entre os lábios, o gosto do fracasso. Esse foi o momento em que eu percebi que tudo havia sido perdido, e aquela simples tarefa havia encontrado seu fim em meio as outras tarefas que falhei enquanto nesta divisão.

A culpa, obviamente, seria a protagonista entre as sensações presentes, e o rosto de Yuichi era a única imagem que conseguia sobrepor a paisagem no meu estado utópico. Infelizmente, o que me restava era deixar para trás a culpa e todo o arrependimento, aprender com todos os erros que cometi nas últimas horas, e voltar para a divisão, para voltar a localizar a criatura, o que não conseguiria fazer enquanto no mundo humano... Pelo menos não com minha experiência.

Em meio a planície minha presença nesse mundo já não mais se fez presente, guiada por aquele ser diminuto enegrecido, que há tanto me fazia companhia. A borboleta era a responsável por me levar de volta em segurança para a Soul Society, e a primeira coisa que buscaria fazer era informar a oficial Himari sobre toda a linha do tempo dos acontecimentos até então. ”Eu não posso falhar... Principalmente agora, que o Yuichi está fora.”