Tive sorte de não morrer hoje.

Toda noite eu dizia essa frase para mim mesmo. Não importava se no fim do dia estaria deitado em um amontoado de lixo, feno de estábulos ou até mesmo com a cabeça apoiada em um travesseiro de penas. Todo dia era uma luta contínua, e me faltava certeza se a sorte do dia anterior manter-se-ia ao meu lado no dia seguinte. Uma infância que consistiu em matar ou ser morto, apesar de eu — geralmente — não ter sido aquele com a lâmina apontada para o coração. E eu fiz muito isso, devo admitir. Não sozinho, porém. Não dispunha da força e tampouco da insensatez de tentar roubar homens, adultos em sua grande maioria, sozinho. Contava com um pequeno grupo de...amigos? Não, em um universo daqueles era impossível desenvolver tamanho afeto. Afinal, depois de ver vários companheiros morrerem acredito que eventualmente tornei-me indiferente a eles. Éramos simplesmente um grupo em que os interesses próprios sobrepujavam os anseios coletivos. Mas isso nunca impediu nossa subsistência. Pelo menos não até conhecermos aquele homem.

Se bem me recordo era equinócio de Outono. E a vida na Sociedade das Almas reflete os eventos do mundo humano. Sério, você não imagina o caos que estava este lugar enquanto algumas guerras históricas eram travadas. Mas no dia em questão eleva-se a ideia de que não existem diferenças entre as almas. Ou ao menos é isso que esperam que os idiotas acreditem. Mas eu só tinha a agradecer. Afinal, não era nem início da tarde e meu grupo já fora capaz de garantir ganhos suficientes para a semana seguinte. Mas não estávamos satisfeitos, não. A sorte estava ao nosso lado. Até que ponto, porém? Porque se na nossa mão jazia um Straight Flush, na de Tsujikaze Awashi um Royal Flush fazia-se presente. Mais tarde vim a perceber que meu pensamento da época era simplista: não era sorte. Era preparo. Qualidade da qual pouco dispúnhamos  e o shinigami tinha de sobra.

Aconteceu tudo muito rápido. No instante em que tentamos emboscá-lo, saltando sobre o mesmo com canivetes em mão, o desgraçado desembainhou  a espada e matou dois no ato. Como deveríamos saber que o capitão — na época — da Onmitsukidō caminhava pelas vielas de Rukongai com roupas à paisana?  E nossas chances de fugir eram nulas. Mesmo se corrêssemos em direções distintas, Awashi lembraria-se do nosso rosto. Seríamos perseguidos até o inferno, e ouso dizer que isso era do agrado do homem. Bastou um cruzar de olhares entre os remanescentes para que soubéssemos o que deveria ser feito: atacar. Todos juntos. Novamente, não porque éramos unidos, mas sim porque era o único jeito de sobreviver. E foi isso que eu fiz. Merda, eu fui o único! Os tolos correram, e eu já não tinha tempo para dar meia volta.

Avancei em direção ao homem. Estava com medo. Seria estúpido se não estivesse. Mesmo assim, minhas pernas me levaram ao seu encontro. Trocamos alguns golpes, poucos para ser bem sincero. Minha faca não parava completamente seus ataques apesar das armas se chocarem e, quando o fazia, sentia que a que eu empunhava estava perdendo força. Não muito depois a lâmina do canivete foi partida em duas, e antes que fosse de encontro ao solo eu já sabia que minha vida teria fim. Awashi levantou a Zanpakutō até acima da cabeça mas, antes que o golpe mortal fosse desferido, o sujeito sumiu. Olhei ao redor buscando encontrá-lo, mas não obtivesse sucesso. Antes mesmo de me mover, o vulto retornou tão rápido quanto partira. E segurava um corpo pela gola. Completamente fatiado e ensanguentado. Tacou aos meus pés e pude ver que se tratava de um garoto do meu grupo, apesar de já saber de antemão. E era apenas uma demonstração, a menos violenta acredito eu, do que havia acontecido com meus companheiros. Não fiquei triste, porém. — E eu? Não vai me matar? — indaguei. Sem responder, Awashi virou-se de costas e começou a andar. E eu o segui. Não só naquele dia mas como em muitos anos que viriam em sequência.


Já faz quanto tempo que eu faço parte da Segunda Divisão? Parei de contar após o décimo ano. Mas muita coisa mudou desde então. O líder já não era mais o mesmo, tal como boa parte da força militar da Onmitsukidō. Contudo, um companheiro de longa data ainda era enviado comigo a missões. Kuramoto Aizawa, sujeito um tanto quanto... curioso, pode-se dizer. O que será que o futuro reserva para nós?