— Você ainda finge que a separação não te abalou. — Os olhos de Emi eram repletos de ternura, como se ela fosse capaz de ver minh'alma por detrás do semblante quieto e sem expressão. A breve sensação de que, toda vez que conversavamos, ela tentava de alguma forma tocar meu coração, passou por mim. Meus olhos, porém, estavam fixos na água corrente daquele pequeno riacho que cortava o jardim dos fundos daquela casa. — Sua casa é bonita. — Comentei, pretensiosamente tentando mudar de assunto. A garota de cabelos negros gargalhou. — Desde quando usa esses artificios para mudar de assunto? — Ela perguntou. Meus dedos tamboliravam sobre a água que fluia; gélida. — Foi um elogio sincero. — Murmurei e nem sequer uma expressão cruzou meu rosto. Por um momento, o vento soou junto ao silêncio. — Você não cansa? — Emi jogou seu corpo para o lado, se apoiando no braço direito enquanto me olhava curiosamente. — De que? — Perguntei, erquendo os olhos, testemunhando sua figura vestindo um kimono branco com estampa rosada. — De manter esse semblante... — Seus olhos buscaram os céus e a palavra que queria falar. — Inexpressivo. — Complementei, voltando meus olhos para a água cristalina que corria sobre o musgo das pedras e o verde do gramado. — Não. — Continuava, ainda que ela não tivesse terminado a pergunta. — É mais cansativo fingir emoções que não tenho. — Meu dedo indicador girava em circulos dentro d'água. — Está dizendo que não sente alegria, tristeza, dor ou qualquer emoção? — A garota de cabelos negros tinha os olhos curiosos e sedentos, mas sua curiosidade fora frustrada pelo som na porta.

*tum tum*

Duas batidas firmes. — Só pode ser brincadeira. — A garota praguejou, levantando-se e indo à caminho da porta. Abriu-a com certa brutalidade, dando de frente à um jovem de aspecto sedentário e cabelos desgrenhados. O rapaz esbaforido, mal conseguia respirar e com dificuldades, tentou se pronunciar. — Diga logo, garoto. — Impaciente, Emi, o apressou. — Ootsu...Ootsuka Ikki... Ele está ai? — Perguntou com dificuldade tremenda. Os olhos da Shinigami viraram-se para os fundos da casa, onde o pesquisador, Ikki, encontrava-se imerso diante ao pequeno riacho. — Ali. — Ela apontou. O garoto adentrou a casa com certa pressa, caminhou até os fundos, sobre a varanda de madeira e respirou fundo. — Sou Kimura Eiji da 12ª Divisão. Vim informá-lo de uma operação no Rokungai que o senhor foi designado. Você deve se apresen-. — Ele falava alto e de maneira estridente. — Diga a localização e o motivo. — Ikki pediu com voz inflexível. O garoto respirou fundo novamente. — Mas sem gritar. — Ootsuka complementou e o sangue correu nas veias do garoto, deixando-o corado. — Uma atividade espiritual foi detectada no Distrito 27 ao Norte do Rokungai... — Ele falava mais baixo, mas sua postura era rigida e demonstrava certa timidez. — A 3ª e 5ª Divisão foram enviadas, mas não conseguiram encontrar o motivo. Estão fazendo uma expedição e pediram para-. — Mais uma vez, ele fora interrompido por Ootsuka. — É o suficiente. Obrigado. — Falou, ainda que, em momento algum, tivesse retirado seus olhos e dedos da água corrente.

O garoto engoliu em seco e seguiu para o lado de fora. — O-obrigado, senhora. — Soltou, enquanto passava por Emi. A garota esboçava um sorriso em seu rosto ao observar Ootsuka se levantando. — Obrigado? — Zombou, colocando as mãos na cintura e abrindo passagem para o Shinigami adentrar a casa. Ootsuka Ikki manteve o silêncio, partindo em direção à saída. — E quanto à minha pergunta? — A shinigami soltou, logo após o cientista cruzar a porta. Ikki ergueu a mão, acenando para a mesma, enquanto continuava seu caminho.

— Não. —

Considerações:

Técnicas:

A terra molhada era incômoda para os pés. A grama, salpicada em poucos cantos, era uma das pistas da falta de beleza do local. No entanto, nem de perto aquele era o distrito mais pobre do Rokungai. As casas eram feitas de madeira maciça, os telhados eram forrados e bem projetados e poucas eram as casas com estrutura precária. As pessoas caminhavam na rua normalmente, como se nada acontecesse. De fato, nada acontecia. A atividade espiritual não havia apresentado risco algum até o dado momento, no entanto, devido sua natureza estranha, a situação parece ter sido tratada com cautela. A estranheza de Ikki, no entanto, se dava ao fato de nenhum boato parecer percorrer as ruas sobre o aparecimento de Oficiais no distrito. Distrito 27. Era possivel que o monitoramento fosse feito devidamente, logo, a presença de Oficiais não era tão rara assim, não é? A movimentação não passara de pura rotina.

Os olhos de Ootsuka caminhavam por entre o vento cintilante. O cheiro de lama e musgo era forte, mas também era possível sentir um cheiro de mofo, como se algo por ali estivesse velho. Caminhou despretesiosamente por entre as vielas, as pessoas com seus sorriso intactos mal observavam sua presença. Um ou outro enraizava seus olhos sobre o mesmo, mas nada que chamasse tamanha atenção. Logo, se encontrava no centro do Distrito ou, ao mesmo, próximo a ele. Era de se pensar que, não saber a localização exata da atividade espiritual poderia ser um problema. Respirou fundo, o incômodo proveniente do cheiro deixou sua mente por um momento, ainda que seu organismo tende-se a contrariá-lo. Concentrou-se na vaga forma das coisas ao seu redor. Os espiritos, as almas dos traseuntes, cada forma de vida tomou espaço em sua percepção. Infímas gotas num organismo gigante com suas reiatsus minúsculas. Não detectou um único Oficial no raio de muitos metros. A 12ª Divisão ainda parecia estar se organizando para a operação. Foi quando, num breve espasmo de tempo, um pulsar inóspito surgiu diante sua percepção. Próximo dali, setenta ou cem metros, não sabia ao exato. Abriu os olhos com certa tranquilidade, reconhecendo que, de fato, aquela atividade não parecia ter um ponto de partida definido. Não esperava, porém, encontrar nada além de um desafio, como fora devidamente relatado por Kimura Eiji. A dificuldade dos demais Oficiais de lidarem com a situação havia instigado uma certa necessidade; a busca pela provação. No sentido literal, poderia-se dizer que Ikki buscava uma estima pelos demais, mas não, isso era muito simplório. Em fato, suas ações mais se resumiam à uma subjetiva necessidade de se autovalorizar; provar à si mesmo ser capaz.

Seus passos perseguiram a atividade até uma área deserta do vilarejo. O cheiro ali era diferente, ainda mais forte. O mofo dera espaço para um cheiro ainda mais pútrido provindo de um amontoado de lixo que estivera jogado em um dos becos, sabe-se lá quanto tempo. Uma única alma vagava murmurante entre as casas, fraquejando em seus passos idosos e esqueléticos. Um homem cujas barbas brancas tão sujas de barro que poderia-se confundí-lo com uma criatura fantasmagórica. Como se não fossemos aquilo que chamam de fantasmas. Os olhos de Ikki se depararam com a figura que se sentava sobre o chão próximo à uma casa, desvendara pelo olhar que, talvez, o homem estivesse cansado demais para continuar. Desviou seus olhos, ainda que a reflexão interna tenha feito-o titubear por um segundo. Caminhou mais alguns instantes no sentido em que a atividade espiritual parecia se intensificar.

"O que é isso?"

Pensou, quando uma pressão avassaladora recaiu sobre seu corpo. Seus olhos arregalados sentiram o peso de um rochedo sobre seus ombros. Os músculos rígidos mau eram capazes de se mover. Sua coluna fora se encurvando até se encontrar apoiado em seus joelhos. Um Shinigami? Ponderou. Hollow? Era impossível distinguir o que criara aquela pressão de maneira tão intensa. Não houvera se atentado a essa possibilidade diante a descrição dada por Kimura. Um inimigo em potencial talvez lhe agradasse mais do que aquela situação, onde o inimigo era invisível. Não sabia com o que estava lidando. Seus olhos pressionados tentaram se abrir, mas só fitaram o chão.

O que poderia ser aquilo?

Considerações:

Técnicas:

Uma gota de suor desceu por minha têmpora.

Meus olhos, por um instante, lutaram para manter nítida a visão à minha frente. Meus ouvidos zuniram num agudo profundo e pude sentir uma dor arrebater a parte interna do meu estômago. Naquele momento, era como se eu tivesse esquecido de respirar. Os pulmões pressionados pareciam absorver todo o impacto daquela força fantasma. Ergui um de meus pés do chão com tremenda dificuldade; precisava caminhar. Ergui minha coluna lentamente ainda que meus ossos e músculos tremessem por inteiro. Minha mente se afogava na sensação que me permeava e, diante a dor, era como se as saídas se estreitassem à uma luta profunda de sobrevivência. Estreitei o olhar, vislumbrando as fibras de minhas mãos saltando ao se movimentarem para se erguerem. Mais um passo. Meus ombros estavam eretos ou, ao menos, quase. Suspirei profundamente, soltando todo o ar de meus pulmões. O poder que recaia sobre mim mantinha suas garras unânimes, porém, se tornavam contornáveis, lentamente. Minha expressão era fria, impassível como o aço; apenas um leve pulso puxava meus lábios superiores.

Raiva.

Era o que sentia, quando cada fibra de seu corpo tentava se mover. Deu um terceiro passo; reconheceu que estava se tornando mais fácil, mas... para onde caminhava? Essa era uma boa pergunta. Conduziu seus olhos pelas redondezas; sua cabeça era capaz de se mover agora. Inspirou profundamente e soltou o ar mais uma vez. Sentiu que o peso daquela pressão toda tornava-se menor a cada respiração. A gota de suor percorreu seu maxilar até se pendurar em seu queixo. Deu mais um passo. Seus braços relaxaram levemente, sentiu o peso em suas pernas ceder. Tentou se ajeitar, mas seus ombros estavam doloridos.

Foi quando aquela rajada de reiatsu deixou seu corpo.

Sua pressão espiritual explodiu e, de repente, o peso se esvaiu. O suor pingou de seu queixo, caindo sobre a lama. A energia espiritual fluia ao redor de seu corpo como chama efervescente e azulada. Seus olhos relaxaram, sua expressão se tornou vazia; voltou a respirar normalmente como se todo o peso houvesse se esvaído aos ares. Sua própria energia espiritual fora diminuindo, lentamente, até que simplesmente sumira. O controle sobre seu corpo, no entanto, estava completamente tomado por si mesmo. Ainda podia sentir aquela pressão, no entanto, ela não o incomodava mais. Algo de estranho porém acontecia naquele lugar. A pressão espiritual se espalhara como uma infestação, junto à um cheiro pútrido e forte que aumentava cada vez mais.

Deu alguns passos vagarosos mais à frente. Olhos atentos vigiaram as redondezas, mais uma vez. Nada de novo. Era de se esperar, sabia que, diante aquele cenário, o mais óbvio seria não encontrar uma pista real sobre o desencadeador do efeito. Duas divisões haviam sido acionadas e nenhuma delas havia conseguido encontrar nada até então. Precisava ser mais lógico: o que estava sendo ignorado. Um velho maltrapilho há alguns metros dali. Ele podia sentir a pressão? Certamente, só não saia dali porque era incapaz. O cheiro. Sim, aquele cheiro era estranho. Ootsuka sabia disso. Por um momento, havia criado o motivo de que ele era devido ao lixo do local, mas algo lhe dizia que não. Já havia sentido aquele cheiro antes e aquele não era o cheiro de lixo.

Era o cheiro de putrefação.

Considerações:

Técnicas:

Talvez, maqueado pelo odor do lixo e da lama, por um instante, ele houvesse passado despercebido pela percepção de Ikki. Agora, porém, era nítido com água translúcida. Olhou ao redor como se maquinasse alguma coisa em seu cérebro e buscou. Internamente, a pergunta que indagava era a única provável naquele momento.

Onde?

Nenhum sinal de corpo em local algum era visível e assim como o odor, espalhado pelo ar, a reiatsu parecia não ser parâmetro para qualquer direção ou local preciso. Olhou para a árvore à sua frente, com suas folhas maléaveis junto ao vento. A pergunta era maior do que onde o corpo estava, não era? Era um corpo de que? Por que estava ali? Como fora morto? Todas as possibilidades levavam à conclusão do produto da charada: o local onde ele estava enterrado. Divagar não era um de seus costumes, ainda que mentalmente o fizesse vez ou outra, definiu então algumas coisas.

O primeiro ponto: era um corpo humano. Aquela reiatsu não poderia ser animal ou de qualquer outra alma senão a de um humano, tinha certeza disso. O segundo ponto: estava ali há dias, devido ao cheiro e a maneira como havia se infestado. O terceiro ponto: havia sido escondido, pois não demonstrara qualquer sinal de normalidade em sua presença desde o momento em que chegara.

Esses pontos levariam-no à chave para a resposta.

Observar que, a partir do ponto em que estava, não havia locais fechados próximos, a grande questão não demorara a surgir. Um costume antigo. Enterrar corpos. A grande árvore, talvez, fosse o pretexto suficiente para o assassino. Uma lápide adequada. O algoz havia tido a compaixão, se assim pode ser chamada, de enterrar seu inimigo num local "especial".

Ikki sacou sua Zanpakutou, pequena e quase inofensiva, caminhando em direção à arvore. A chuva havia criado lama por todos os lados apagando as evidências mais visíveis, porém, se prestasse atenção era possível perceber que apenas um breve e disforme circulo não possuía grama naquele ponto. Era ali. Cravou a Zanpakutou sobre o solo, puxando a terra para fora até que sentiu perfurar algo e um gemido fora ouvido.

— Está vivo? — Perguntou-se

Considerações:

Técnicas:

A reiatsu externa, naquele momento, intensificou-se. Cerrou os punhos sobre sua arma enquanto puxava a terra ainda que sobre a pressão do poder que já não o abatia como antes. De repente viu pernas e braços tomarem forma e então, um tronco. Afastou-se mais um pouco, dando espaço para cavar em outro ponto, até que, um rosto surgiu. Repleto de lama e barro, suas vestes marrons eram quase irreconhecíveis mas, ainda assim, era um shihakusho. Seu semblante era de dor, seus olhos estavam fechados, mas seu peito subia e descia lentamente. Em sua pele, lascerações por todos os lados, junto das feridas que estavam abertas.

Quando sentiu o ar fresco, abriu os olhos.

Tentou falar, mas sua voz não saiu. Ikki se aproximou, ainda que não demonstrasse uma sequer reação, nem mesmo a de surpresa ou compaixão pelo homem. Tocou-lhe o ombro, como se afagasse sua apreensão. Não tinha palavras. O homem morreria em pouco tempo se não tivesse tratamento adequado. Poderia, por um ínfimo instante, perguntar-se como ele havia ficado vivo por tanto tempo, mas, talvez, já tivesse a resposta. Havia utilizado de sua reiatsu como combustível. Um membro da Quarta Divisão? Provável que tenha utilizado do Kaidou para que a putrefação não chegasse aos orgãos, mas, em dado momento, sua reiatsu começara a ser expulsa como forma de defesa.

— Ele possui uma reserva gigantesca. —

Seu pensamento, no entanto, fora interrompido pelo som de passos rápidos se aproximando pela lama. Virou-se para olhar, deparando-se com uma figura esquelética próximo a si. As mãos do homem vieram em direção ao seu pescoço num movimento hostil. Ikki pode ver os olhos fumegantes atingirem os seus, sua boca cheia de saliva escorrendo se assemelhava à de um animal. O instinto básico fora se esquivar. Ootsuka deu dois passos para trás, ainda que a posição não o favorecesse. No processo se levantou, apontando a Zanpakutou para o homem enquanto mantinha certa distância.

— Por que? —

Havia visto a face do homem. Era o velho moribundo que antes se esgueirava pelas ruas; solitário. Seus olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados em poucos fiapos brancos lhe davam um ar grotesco e monstruoso; pior até mesmo que o quase-cadaver que ali jazia. — Você não pode tirar ele de mim. — Choramingou, esfregando as mãos sobre o rosto elamaçado e cheio de suor e saliva. — Diga-me o porquê. — Ikki questionou mais uma vez. A expressão fria, os olhos impassíveis vislumbraram o homem olhar de soslaio o homem enterrado. Cabisbaixo, ele murmurou.

— Eu estou com fome. —

Considerações:

Técnicas:

Naquele exato momento, toda trama desenrolara na mente de Ikki.

O corpo, o homem moribundo, o lixo remexido e seu odor, a falta de pessoas nas casas e um único espectador.

Foi a opção que encontrara, não é? Um shinigami ferido e sem nenhum combatente para resgáta-lo fora deixado para trás. Não houve notícias de resgate e o Shinigami demonstrou-se inconsciente. A fome torna as pessoas insanas; a falta de comida e o desespero. Viu ali, uma oportunidade. Era, porém, incapaz de matá-lo, tinha então de esperar. Esperar que a morte viesse espontâneamente. Enterrou-o próximo à figueira, onde pudesse lembrar facilmente e esperou. Esperou durante dias, mas esses dias nunca vieram.

O dia em que ele se alimentaria da carne do Shinigami e saciaria sua fome.

Agora, diante a possibilidade de perder sua única e provável fonte de comida, ele enlouqueceu de uma vez. Estava sedento. Havia esperado dias e não aguentaria ter esperado atoa. — Este homem será levado para a Soul Society, onde receberá cuidados médicos adequados. — Sentenciou com o olhar firme ao velho moribundo. Este, por seu lado se contorceu com as palavras. — Não. — Sussurrou, dando um passo à frente. — Você não pode. — Ikki sequer moveu a arma que continuava apontada na altura do peito daquele homem. — Eu esperei tanto. — Ele deu mais um passo à frente e, naquele momento, a reiatsu ambiente aumentou drasticamente.

Ikki pensou que era provavel que o corpo do Oficial já não estivesse aguentando utilizar a técnica de cura e estivesse desperdiçando reiatsu, porém, algo de mais impressionante ainda saltava seus olhos. O velho mendigo sequer parecia ser afetado por tal pressão. A grande questão que pairava naquele momento era:

Por que?

Considerações:

Técnicas:

Inclinei a cabeça para enxergá-lo melhor; analisá-lo com precisão. Seu rosto não possuia cicatrizes, apesar disso, era repleto de rugas. Sua pele era marrom, num tom quase preto, porém, não era seu tom natural; aquilo era sujeira. Seu sorriso era macabro, sanguinolento; acanhado. Como poderia uma figura daquelas não sentir aquela pressão espiritual? Possuia ele uma reiatsu maior que a minha? Se fosse possível, como eu...

Naquele momento, uma única conclusão veio à mente de Ikki. Uma única conclusão que fora interrompida pelos passos corridos e desajeitados daquele idoso aparentemente frágil. As mãos sujas tentaram agarrar a Zanpakutou, mas Ikki se afastou com um passo lento. Ele era devagar. Foi então que, ali, frustrado, o velho moribundo golpeou o ar com as palmas vazias e uma rajada de pressão espiritual fizera os ventos soarem.

— É você. —

Os pés de Ikki se moveram rapidamente. Em passos corridos e como um risco no ar, ele se moveu para a esquerda, evitando a energia espiritual provinda daquele homem. Seu olhar frio analisou, mais uma vez, o homem dos pés a cabeça. Dessa vez, ciente do que ele guardava. Uma reiatsu absurda que havia confundido até mesmo os Oficiais de diversas divisões. Ele era perigoso; sabia disso. Não só por sua mente insana, como também por sua energia incontrolável. Era incrível como não chegara à essa conclusão antes. A energia dispersa de sua alma havia se espalhado por todo esse tempo, anulando toda e qualquer presença naquele lugar. O Oficial ferido e enterrado? Sim, ele mesmo havia machucado-o.

Quarta Divisão.

Provavel que ele tenha tentando ajudá-lo, mas despreparado para a pressão que iria encontrar, acabou ferido. O que acarretou os acontecimentos seguintes. Você é um pobre solitário como eu, certo? Porém, nossos meios e fins são totalmente diferentes.

Considerações:

Técnicas:

Os passos de Ikki deslizaram sobre a lama, seus pés uniram-se até que seu corpo estivesse firme. Seu olhar vidrado ao inimigo era intocável; ininterrupto. Segurou a Zanpakutou próxima a cintura, relaxando os braços, ainda que soubesse que o homem não estava satisfeito. — Você não pode fazer isso! — Ele esbravejou, tapeando o ar mais uma vez. A pressão espiritual aumentou; mais uma explosão de reiatsu fora em direção a Ikki, porém, dessa vez, não se movera.

A energia fluindo ao redor de seu corpo queimava, mas não passava de fagulha; não era fogo. O homem era incapaz de controlar seu poder, isso era perfeitamente visivel. Talvez, ele mesmo não tivesse ciência daquilo que estivesse fazendo. Estava lúcido? Ikki se perguntou, a Zanpakutou fora posta frente a seu corpo enquanto sua própria energia espiritual começava a fluir ao redor de sua pele; uma espécie de epiderme extra que flambava toda a extensão de sua anatomia. A princípio, a reiatsu de Ikki era turbulenta — não tanto quanto a do velho, mas turbulenta o suficiente para não agradar o próprio cientista.

— NÃO CHEGUE PERTO! — O homem gritou quando Ikki deu um passo à frente. Suas mãos abanaram o ar mais uma vez, logo em seguida, veio uma terceira rajada de energia espiritual. — EU VOU TE MATAR. — Agora ele expressava nitidamente sua intenção de matar Ikki, ainda que, antes, ele apenas parecesse um cão acoado. Naquele instante, porém, toda sanidade que ele detinha parecia ter sido perdida pela fluidez do combate.

Inexperiência.

A energia ao redor de Ikki se manteve turva diante pressão, seus olhos chegaram a semicerrar-se por um momento, diante a força dos ventos. Colocou uma das mãos em frente ao rosto, diminuindo o atrito da força que vinha em seu rosto. O dedo indicador que segurava a Zanpakutou, porém, tambolirava devagar o punho. Um, dois, três. Um, dois, três. Uma contagem padronizada. Um foco. A reiatsu que concentrava ao redor de seu corpo começava a tomar forma, devagar, mas ele parecia ter que lidar com distrações.

Foi quando o velho decidiu avançar mais uma vez.

Considerações:

Técnicas:

Era possível sentir o efeito de cada movimento que ele exercia. A corrida em minha direção aumentara consideravelmente o poder da pressão que recaía sobre meu corpo. Por um momento, intensifiquei a reiatsu ao meu redor, porém, o conflito acontecia no plano físico. Minha atenção fora dividida com o corpo do homem vindo em minha direção, suas mãos tentando tatear o ar podiam parecer inofensivas, mas eu podia sentir; estavam repletas de reiatsu sendo expelida.

Eu poderia atacá-lo.

Pensei, enquanto esgueirava meu corpo para o lado, afastando-me de suas investidas, graciosa e corriqueiramente em recuos passados.

Porém, ainda não sei a extensão de seu poder, logo ele poderia me subjulgar facilmente num acesso de fúria ou ataque concentrado. Seria necessário que eu lidasse com sua reiatsu e, então...

O homem continuava a avançar, enquanto Ootsuka se afastava; uma luta de gato e rato. O pesquisador, no entanto, a cada momento em que a reiatsu recaía sobre seus ombros estudava minusciosamente sua própria eficácia em contra-atacá-la. A energia ao redor de seu corpo estava densa, porém, ainda não era suficientemente controlada para que mantivesse um conflito equilibrado com a energia oposta. Em outras palavras, era insuficiente. O fato do homem continuar a segui-lo desordenadamente e sem qualquer tipo de estratégia ou sensatez, permitia que ele se concentrasse nesse processo, sem se preocupar excessivamente com o contato físico.

Ele era lento.

Estava debilitado, obviamente. Seus pés enroscavam-se entre eles e ele tropeçava, vez ou outra. Reeguia-se, porém, os braços estendidos; os olhos arregalados e os murmúrios explosivos e initendíveis. Tamanho poder desperdiçado; pensava Ikki. Seus pés sambavam numa dança que o levava a caminhar de costas, onde seus olhos jamais deixavam seu perseguidor. Direto, sério e sem emoção alguma, ele se atentava apenas aquela pressão que mantinha seu corpo mais pesado e sobre alerta.

Porém, aquilo estava perto de terminar...

Considerações:

Técnicas:

Numa das ondas de pressão que lhe afligiram, Ikki pode sentir.

A energia fluir por sobre seu corpo. Sua reiatsu como uma chama que o aquecia e então, um avanço. Seu pé preparado para recuar, serviu de apoio, sua mão voltou-se na altura do peito. A Zanpakutou empunhada na mão esquerda, um passo à frente, de encontro ao moribundo. Estreitou-se a distância num milésimo de segundo e, num piscar de olhos: o encontro. O braço de Ikki se estendeu, a Zanpakutou passara próxima ao corpo do homem, mas não o tocara; no entanto, um filete de sangue escorrera por sua bochecha.

Reiatsu.

O homem se afastou, cambaleante, suas mãos sobre o ferimento recente. A respiração ofegante, ainda que fosse difícil equiparar esse fato, diante a afobação anterior. Estivera atônito por um momento. Quanto tempo demorara para alguém conseguir ferí-lo? Ikki sequer pensou nessa possibilidade; precisava manter a mente focada. Girou o corpo voltando-se ao inimigo. Não detinha as habilidades de combate necessárias para um combate físico, sabia disso. Sua agilidade, porém, era trunfo; seu controle era ás.

Esperou.

Esperou que o homem olhasse o sangue escorrendo por seu rosto e sujando suas próprias mãos e o grito de desespero que o mesmo soltara ao vento. Quando, então, o mesmo homem correu como um animal selvagem em direção à sua presa encurralada. O bote da serpente mais uma vez aconteceu. Ikki desviara o corpo alguns centímetros para o lado direito; puxara sua Zanpakutou na altura do queixo e então fizera um movimento horizontal. Mais uma vez...

Errara o corte.

O sangue, porém, escorreu pelo peito do velho.

Considerações:

Técnicas:

Dessa vez, no entanto, o homem desgraçado não reagira diante o ferimento; sequer parara ou demonstrara dor. Ao contrário, sua mão fora de encontro à mão livre do pesquisador, agarrando-a com certa ferocidade. Os olhares se cruzaram. A presa e o caçador. Dessa vez, os olhos de Ikki se arregalaram; sua canhota num reflexo rápido buscara atingir o corpo do homem, porém, ele a agarrara antes disso. As duas mãos atadas. O velho arreganhou a boca, afastando a cabeça e então, lançara os dentes em direção ao ombro do Shinigami.

— Gahh! — Um lamento de dor diante os dentes que cravaram em seu corpo.

O sangue escorrendo por suas vestes enquanto suas mãos finalmente eram soltas. O homem cerrava cada vez mais a mandíbula, intensificando o ferimento. Num ato de sobrevivência, Ikki segurara sua cabeça; lançara sua reiatsu através do corpo em direção ao homem. Naquele momento, no entanto, percebera rapidamente que sua reiatsu era inútil. Ainda que não sentisse a pressão da reiatsu do moribundo, o mesmo também não reagia à sua. Foi quando num ato de desespero e dor, refletidos em sua face e corpo, sua canhota rasgou o ar, indo em direção a parte traseira do crânio do homem.

Cravada.

A Zanpakutou fincara em seu cérebro e o sangue escorrera por suas costas. A mandíbula do homem se abria à medida que este despencava no chão. Ootsuka Ikki, em contrapartida, tinha seu corpo levado à exaustão, graças à dor. Um de seus joelhos tocava a lama, sua canhota tocando o ferimento em seu ombro direito, teimoso em sangrar. A respiração ofegante e o rosto enrijecido pela expressão de dor. Sequer conseguia abrir o olho direito. Uma gota d'água caiu em sua nuca; outra em sua testa; outra em suas mãos; até que uma leve chuva começara a cair.

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A pressão espiritual sumira.

O homem estava morto. Diante a lama e a água que agora escorria ao redor das sandálias de Ikki, fluía sangue. Seus olhos fitavam o chão, tentando superar a dor que percorria o ferimento. Não antecipara tal golpe. Por um milésimo de segundo, havia pensado ter vencido o homem ao sobrepujar sua reiatsu esmagadora. Estava errado, porém. Sentiu como se tivesse falhado e, enquanto se levantava lentamente, perguntava se aquilo era mesmo uma vitória.

Um homem fadado à miséria; solidão e tristeza. Morto pela insanidade causada pela própria fome e abandono. A justiça não tinha uma face diante aqueles menos favorecidos e Ikki sabia disso. Podia julgá-lo. Julgar seus atos e responsabilizá-lo pela morte e dor que causara, porém, era doce a ilusão de pensar que somente ele havia causado todo aquele caos.

Quantos anos?

Quantos anos vivera perdido na escuridão de seus próprios pensamentos? Sem luz ou túnel que pudesse seguir. Lhe deram apoio ou entendimento, mas apenas o suficiente para que sentissem uma ínfima pontada de satisfação pessoal. Compaixão; uma falácia. Não queriam salvá-lo. Prefeririam assim, não é? Ele morto. Talvez, por isso, essa Operação tenha sido um fracasso desde o começo. Displicência; ignorância; ingenuidade. Quantas dessas características estiveram presentes naqueles que lhe rondearam? Quantos olhares de desprezo recebera por toda sua vida até que se tornara um animal? Ou, ao menos, tenha sido tratado igual um animal para que achasse realmente ser um.

— Você tentara salvá-lo... —

Pensava enquanto olhava o homem deitado sobre aquele "túmulo". Ele ainda respirava.

— Porém, ele não precisava de salvação e sim de compreensão. —

Ainda que a dor em seu corpo permanecesse latente, Ikki puxou o corpo daquele buraco, na tentativa de erguê-lo. Ele era pesado. Tão pesado que sequer conseguira movê-lo mais do um metro antes que a dor em seu corpo latejasse novamente e o fizesse soltá-lo. Ikki sentou-se na lama, sob a chuva e o céu nublado. A água escorrendo em seu rosto e a lama sujando suas vestes. Ergueu os olhos pra cima e respirou profundamente, por um momento, fechou os olhos.

— Eu falhei? —

Perguntou. Quem saberá dizer se pra si mesmo ou para outro alguém.

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Permanecera ali, sentado, por alguns minutos; até que...

A lama sendo pisoteada por diversos pés e então, diversos olhares. Os demais Shinigamis chegaram trazendo reforços. Três Oficiais. Ikki sequer ergueu os olhos para vislumbrá-los. Pode ouvir, no entanto, os passos se aproximando e a voz lhe questionar. — Tudo bem? — Um dos homens perguntou. Os olhos de Ootsuka Ikki estavam vidrados no homem caído no chão; nesse momento, porém, passearam entre o morto e o quase-morto e ele não respondeu a pergunta. — Vamos, te levaremos até a 4ª Divisão, onde irão lhe curar. — A voz do outro shinigami chegou aos seus ouvidos, enquanto seus braços tocavam seu tronco, ajudando-o a levantar.

Ele permaneceu em pé com uma das mãos sobre o ferimento.

— Posso andar sozinho. — Murmurou, desvencilhando-se dos braços do Oficial. A cada passo, começara a se distanciar lentamente da cena que ficara naquele local. — Ele ainda está vivo. — Falou, ainda que de costas para aquele quadro. — O Shinigami. — Informava, indiretamente lançando à luz a ideia de que também havia outro que deveria receber o tratamento necessário.

Ikki não esperou os Oficiais; seguiu sozinho, molhando-se na chuva que tornara-se o funeral de um homem. Aquela era a primeira vez que retirara a vida de alguém daquele modo brutal. A primeira vez que exercia a lei daquele modo. De certa maneira, porém, se perguntava se aquilo realmente era justiça. Se aquilo realmente tinha algo de justo ou simples e básica sobrevivência do mais forte. Animais; brutais e perigosos lutando pela sobreposição do mais forte na hierarquia. Escolhemos quem vive e escolhemos quem morre.

Afinal, qual era o seu papel nisso tudo?

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