Mais uma noite horrível de sono, apesar da calmaria e segurança que geralmente é a Seireitei, para alguém acostumada a descansar com os dois olhos abertos como é o caso de Lillet, talvez uma paz assim fosse ainda mais desconfortante do que viver no perigo. Hoje em especial estava ainda mais silencioso, nenhum sinal do Capitão deitado roncando na varanda, nenhum marido furiosos batendo nos portões atrás da cabeça da Tenente por ter desonrado suas esposas, e andando pelo 5º esquadrão Lillet não parecia avistar ninguém com exceção de dois novatos que estavam treinando no dojô.

— Ei, onde está aquele bastar… digo, onde está o capitão? — Perguntou aos dois enquanto mal corrigia seu insulto, Kina os olhava de maneira neutra e falava num tom calmo, mas para aqueles novatos que conheciam sua fama na academia, poderia parecer um tanto ameaçadora.

— Ah pare-parece que ele foi convocado cedo para uma reunião — Respondeu um dos dois hesitantemente.

— E quanto a Tenente?

Os dois Shinigamis olharam um para o outro, sem ter certeza do que aconteceria ali entre os três sem nenhum superior para impedir uma catástrofe, e então balançaram a cabeça em negação, sem saber a resposta para a pergunta.

— Entendo… — Sem dizer mais nada Lillet se virou para fora do Dojô, não queria deixar seus colegas mais desconfortáveis do que já estavam, afinal aqueles dois ainda precisavam de um tempo até perceberem que a maioria dos rumores sobre os membros da 5ª divisão são um tanto quanto exagerados.

— Já faz um tempo, que não tenho um dia de folga… — Na cabeça da mulher, a ausência de seus superiores significava “sem ordens a serem cumpridas”. — Acho que vou visitá-lo um pouco.

A pessoa a qual Lillet se referia era aquele que a ajudou tanto há alguns anos, rumo a Academia de Shinigamis a mulher foi se encontrar com um de seus antigos instrutores. Como de costume a caminhada pela academia, com tantos olhares, era como ser uma atração de circo, a impressão que se passava é que os rumores haviam piorado desde que ela havia saí dali, quase como uma lenda urbana contada aos calouros. O lado bom disso tudo era que ao menos ninguém se colocava em seu caminho.

Como de costume seu antigo mestre meditava sozinho em um dos jardins, era um senhor grisalho que compensa a falta de cabelo no topo da cabeça com o comprimento de sua barba, suas vestes um kimono todo branco e tinha a coluna um tanto arqueada para frente, sentado e de pernas cruzadas, sua zampakutou repousava em ambas as suas mãos para cima. Lillet ficou parada em silêncio até ser notada.

— Vai ficar sem dizer nada com cara amarrada? — Disse o velho sem se virar e ainda de olhos fechados.

— Eu não… queria interromper — Kina respondeu pausadamente, enquanto movia suas bochechas com as mãos, levando a sério o comentário.

— Então porque não aproveita que está aí parada e vai aquecer a água para um chá. O que deu em você de qualquer forma? Não é do seu feitio vir me visitar, finalmente foi expulsa do Gotei 13 ou algo assim?

Após alguns instantes de silêncio, Lillet se virou irritada para a saída — Esqueça… — Era melhor ir embora antes que tentasse atacar o velho de novo.

— Ah! Espere, espere! Eu só estava mexendo com você. Vejo que seu temperamento continua igual — Ele se levantou apressadamente antes que Lillet realmente fosse embora — Não precisa ir agora, porque não me ajuda a movimentar esse corpo velho e depois conversamos um pouco?

— Eu não… vim aqui para brigar.

— Esse velho aqui precisa ter certeza de que você não vem negligenciando o treino, caso contrário eu seria uma falha como professor — Concluiu o homem, que com sua espada já desembainhada tomava uma posição de guarda.

Lillet tinha a mania de iniciar seus ataques no treino sem aviso prévio, e por isso o homem já estava preparado. Ela ergueu a palma na mão na direção do velho, na intenção de entoar algum encantamento, mas dessa quem atacava sem aviso era seu professor, que a interrompia com um corte vindo de cima, forçando-a a recuar.

— Sem Kidous, você já é boa o suficiente com isso! Mostre-me sua espada.

Mais uma vez um silêncio absoluto, sem insinuar nada, Lillet utilizou um Shunpo para o lado do velho, puxando sua zampakutou da cintura e tentando golpear seu professor de surpresa, mas lhe faltava rapidez, e com facilidade o velho um corte atrás do outro.

*CLANK CLANK CLANK

O som de metal se batendo sucessivamente ecoava para fora do jardim enquanto os dois continuavam a praticar. Uma sequência de golpes diagonais, seguido por uma vertical larga e por fim uma estocada, a técnica de Lillet era executada com precisão como se tivesse saído dos livros da academia e esse era justamente o problema que a tornava completamente previsível para o seu oponente, com facilidade o Velho continuava a se defender enquanto avaliava sua pupila.

— Heh! Como esperado da sua cabeça de vento. Treinou apenas os encantamentos e esqueceu de que um Shinigami batalha com espadas. Esse tipo de técnica básica é ótima para passar nos exames, mas nunca vai conseguir me acertar com isso — Num movimento rápido, o velho pulou alto, chutando forte o rosto de Lillet e a empurrando para trás — Seus cortes não são velozes o bastante!

A frustração de não acertar junto das provocações foi acumulando em Lillet até que finalmente ela perdia a paciência, e com um grito gutural avançou colocando uma grande quantidade de reiatsu em sua lâmina, atacando o velho com uma intenção assassina. Porém como apontado pelo homem, por mais que o golpe tivesse poder o suficiente para partí-lo em dois, ainda lhe faltava a rapidez necessária para acertar, mais uma vez com facilidade o homem refletia o ataque e contra-atacava Lillet a empurrando para longe, a pancada na cabeça dessa vez a trazia de volta aos seus sentidos.

— Ohohohoho! Como pode uma garotinha que ainda não tem nem cem anos de idade tentar almejar a vida deste velho. Talvez eu esteja pegando muito leve com você.

— Sinto muito por isso… — Embora sua feição não demonstrasse, Lillet estava muito envergonhada com aquilo.

Aquela pequena troca no entanto era o que ela precisava para perceber sua falha, comparando seus movimentos com o de seu oponente, Lillet percebia que diferente dela que não prestava atenção em sua energia enquanto atacava com a espada, o velho controlava seu fluxo de reiatsu para aprimorar os movimentos o tempo todo. No final das contas a teoria não era muito diferente do controle necessário para encantamentos, e assim Lillet bolou um plano de ataque.

Mais uma vez a mulher avançou com sua espada, seus cortes iniciais na mesma sequência anterior, sua intenção era que o velho continuasse a subestimando, como planejado, seu oponente tentava contra-atacar também com o mesmo golpe. Rapidamente Lillet recuou e então avançou mais uma vez, dessa vez com toda a sua rapidez desferiu o corte horizontal mirando a garganta do velho, que mal pôde se esquivar para trás, cortando sua barba ao meio.

— Aah! Sua piralha, minha barba! — A tensão da “luta” acabava naquele instante, mesmo Lillet que geralmente é séria, sorriu.

— Ficou bem no senhor… pff — Segurou o riso com a boca, logo voltando à sua expressão neutra.

— Desisto desisto! Cansei disso, vou preparar um chá.

A partida treino estava terminada, Lillet agora tinha uma visão mais clara de seus pontos fracos, e o velho… Bom, o velho estava feliz de rever sua estudante, ignorando a raiva momentânea de ter perdido metade de sua barba de mais de um século. Por algumas horas os dois sentaram bebendo chá e conversando, um dia de folga como aquele era realmente raro na agenda de Lillet, mas não duraria por muito tempo, pois enquanto conversavam, uma Borboleta Infernal se aproximava lentamente do local.

Mestre e discípula, ambos conversavam já por algumas horas ali em um dos campos da Academia, ao ponto de que o chá havia esfriado e já era quase hora de partir.

— Como é no Quinto esquadrão? Eles estão te tratando bem? — Perguntou o velho de uma maneira preocupada.

— Alguns ainda se afastam de mim… — A voz de Lillet vacilava um pouco dizendo isso, era algo que com o tempo a incomodava mais e mais — Mas não é todo mundo, principalmente meus superiores, eles são…

— Esquisitos?

— Diferentes… — Sua feição nesse momento já tinha um pouco mais de brilho, no final parecia feliz de ter entrado naquele esquadrão problemático — Eu confio neles — Para Lillet que sempre teve que se virar sozinha, confiar em alguém era grande coisa, e isso deixava seu professor feliz de ouvir.

A conversa era interrompida quando Lillet erguia seu dedo indicador para que a Borboleta Infernal que se aproximava pousasse, em seus pensamentos, ela estava um pouco decepcionada por seu “dia de folga” não ter durado tanto quanto imaginava, mas também não podia reclamar, a vida como Shinigami por mais dura que fosse era muito melhor se comparada ao seu passado.

— Tenho que ir — Lillet se levantou batendo a poeira de seu kimono preto, sua missão designada era rotineira, atravessar até o plano mortal e investigar o sinal de um Hollow.

— Tome cuidado, e venha mais vezes!

Sem responder verbalmente, a mulher acenou com a cabeça, de sua cintura puxou a katana capaz de abrir o portal para o mundo dos vivos — Destravar! — e sem hesitar, correu direto para o Senkaimon.

O portal abriu do outro lado em um pequeno beco vazio na movimentada cidade de Seul, não que localização fizesse diferença visto que ninguém poderia vê-la, mas Lillet achava agradável o fato de já não dar de cara com um carro ou ônibus no meio da rua.

Sua primeira ação era a de subir num prédio alto e procurar pelo Hollow, no entanto por mais que Kina tentasse procurar pela energia espiritual do “monstro”, não havia nada que retornasse aos seus sentidos, ele estava escondido.

— Tenho certeza de que aparecerá durante a noite — Não era muito incomum que Hollows esperassem pelo pôr do Sol antes de se revelar, provavelmente pela semelhança com seu próprio mundo de noite eterna.

Mas se tinha algo que Lillet notava em sua busca era uma presença que se destacava em meio a todos àqueles mortais, não era seu alvo um monstro mas sim um garoto. Ele era baixo, de braços e pernas finos, uma postura fraca, uma aparência abaixo da média, tinha um cabelo castanho curto e vestia um uniforme escolar, parecia novo. Não havia nada que aquele garoto se destacasse fisicamente, e ainda assim de alguma forma sua energia chamava a atenção se comparada com aqueles ao seu redor. Curiosa com seu achado, Lillet decidiu seguí-lo.

Ainda era o começo da manhã e o rapaz parecia estar indo até a escola, Lillet não o seguiu lado a lado, por mais que não pudesse vê-la, para ela aquilo ainda era um tanto desconfortável, então preferiu observar à distância.

Como esperado, aquele garoto não tinha nada de excepcional, começava o dia tomando uma surra por outros garotos com o mesmo uniforme, mas tudo o que ele fazia depois e largado sozinho era se levantar batendo a poeira, guardar sua carteira saqueada e então seguia seu caminho sorrindo. Para Lillet aquilo era inconcebível, logo ela que vinha de um lugar onde o lema é matar ou morrer, sorrir naquela situação não fazia sentido, mais que isso, ela não compreendia como ele nem ao menos tentava revidar, como nem se dava ao trabalho de lutar por sua sobrevivência e dignidade.

Já naquele prédio chamado escola os abusos ao garoto continuavam, encontrões “acidentais” que derrubavam suas coisas, pés em seu caminho que levavam sua cara direto para o chão e mesmo suas coisas não estavam seguras, sempre que o garoto voltava à sua mesa tudo estava riscado e espalhado, e como se fosse tudo apenas uma rotina, ele apenas se levantava, organizava e seguia com seu dia.

Aos poucos a curiosidade de Lillet se tornou intriga, e da intriga veio a raiva, raiva daqueles que maltrataram o rapaz, mas principalmente raiva de sua covardia por não revidar uma única vez. Por muitas vezes a mulher contemplou simplesmente cortar ao meio todos naquele prédio, isso certamente cessaria aquela situação aborrecedora, mas não é dessa forma que um Shinigami de comporta, Lille já estava quebrando protocolos o bastante apenas por seguí-lo, e por essa razão se conteve.

— Uma perda de tempo… — Como podia alguém tão fraco ter uma energia espiritual tão evidente? Incapaz de compreender isso a aborrecia, era melhor simplesmente ir embora e esquecer, quanto antes ela voltasse a procurar o Hollow logo poderia retornar à Soul Society.

Cansada daquilo, Lillet se distanciou novamente à procura de seu alvo, sem sucesso rondou pela cidade tentando detectar a energia do Hollow por algumas horas até que já estava próximo do Sol se pôr. Paralelo a isso, periodicamente acabava por sentir a presença do garoto de antes, que era prontamente ignorado pela Shinigami.

Enquanto isso o rapaz entrava num campo de construção, seus braços cheios com sacolas de lanches quase caindo pelas beiradas, como era de se esperar além de saco de pancadas ele também era o faz-tudo para seus valentões, não tinha outra opção se quisesse apanhar menos.

— Seu idiota por que demorou tanto? — Gritou um dos delinquentes enquanto derrubava o garoto com um chute.

E numa situação como aquela era de se esperar que ele apenas ficasse quieto e derrotado no chão, no entanto indo contra todas as expectativas pela primeira vez o rapaz se moveu logo em seguida, uma investida agarrando seu agressor e os empurrando para longe daquele lugar em específica, poucos segundos depois, um grande impacto era escutado onde os dois estavam.

*BAAAM!

— O que foi isso? Uma coluna de ferro caiu? — Perguntou de longe um dos que estavam no local — E- Ei vamos sair daqui!

É claro que enquanto a poeira baixava ninguém podia ver a verdadeira causa daquele impacto, ninguém exceto o garoto franzino, que por detrás da poeira avistava uma figura escura, alta e disforme, com membros alongados e uma característica máscara branca, era um Hollow.

— Iiiihhhh Rr! — A criatura soltou um grunhido estridente de frustração antes de atacar novamente com suas mãos. O garoto, vendo que aquele que mal havia salvo ainda estava desorientado no chão, ao invés de fugir se colocou na frente do Hollow em uma tentativa patética de proteger os outros. Com medo, seu corpo instintivamente se contraiu e os olhos se fecharam, mas o golpe do monstro nunca chegou, ao invés disso podia ouvir a criatura gritando mais alto do que nunca, como se estivesse com dor.

Foi só ao abrir os olhos que pode entender o motivo, o monstro, debatia nas vigas de aço agonizando em dor, no chão, seu braço decepado, e de frente ao garoto, pairava uma mulher alta vestida de preto e segurando uma katana, a mesma que o havia seguido por metade do dia, a Shinigami Kina Lillet.

Durante sua patrulha Lillet estava tão determinada a ignorar a Reiatsu na direção do garoto, que quando a presença do Hollow surgiu ali perto levou-a um tempo para perceber que aquele se tratava de seu alvo. Enquanto corria em sua direção, de longe a  Shinigami pôde avistar o ato de bravura do rapaz, e por pouco chegava a tempo para protegê-lo, um corte preciso que separava os braços do Hollow do resto do corpo.


Naquele momento Lillet pensou consigo mesma que devia ao velho por tê-la treinado justamente no que ela mais precisava naquele momento, amaldiçoou-o mentalmente com suas habilidades de dedução quase premonitórias, como se soubesse o que aconteceria hoje. Mas aquilo não era momento para isso, Kina precisava primeiro se livrar da ameaça.


O Hollow em questão começava a se recuperar da dor, ele no entanto nunca chegou a ser de fato uma ameaça, caso contrário a Central não teria mandado Lillet sozinha para tomar conta dele. O trabalho de um Shinigami é purificar os Hollows com um único e decisivo golpe a fim de trazer menos sofrimento para todas as partes, e assim foi feito: Uma investida de um único corte limpo foi tudo o que a Shinigami precisou para derrotar aquele pobre Hollow, que se despedaçando finalmente retornava ao ciclo de reencarnação.


Com o giro de sua Zampakutou como se fosse uma chave novamente o Senkaimon era aberto, mais uma missão cumprida, e Lillet se preparava para partir quando escutou os passos se aproximando por suas costas.


— Muito obrigado! — Era o garoto de antes, se curvando para a Shinigami em agradecimento.


— Você… consegue me ver? — Lillet estava surpresa, nunca antes havia encontrado um humano capaz de notá-la.


— Sim! É a primeira vez que a vejo mas… eu vi você me protegendo o dia todo. Você é meu anjo protetor?


— Tolice, como poderia um anjo da guarda ficar apenas olhando tudo pelo o que você sofre o dia inteiro?


— Ainda assim você me salvou! — Era difícil para a Shinigami negar que aquele de certa forma era o seu trabalho, por mais que as terminologias estivessem erradas.


— Por que fez aquilo? Por que salvou seu agressor? Se o tivesse deixado morrer sua vida seria mais tranquila — Aquela situação de diálogo era rara, talvez Lillet pudesse aproveitar para entender melhor aquele humano, assim quem sabe poderia entender a si mesma. Mas no fundo ela já sabia que apesar de sua fraqueza física, aquele garoto tinha a coragem de se sacrificar pelo outro, não importa quem seja, e talvez por isso seu espírito fosse tão forte. Na cabeça de Lillet, alguém como ele provavelmente seria um melhor Shinigami do que ela. — Esqueça, não precisa responder.


A Shinigami continuou em frente, desaparecendo enquanto o portal se fechava para nunca mais ser vista pelo garoto.